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Com escassez de gás de cozinha, venezuelanos apelam à lenha

22.mai.2017 - Gustavo Misle segura um cartaz na forma de esqueleto onde se lê "passando fome", durante protesto contra o governo de Nicolás Maduro, em Caracas, Venezuela - Meredith Kohut/The New York Times
22.mai.2017 - Gustavo Misle segura um cartaz na forma de esqueleto onde se lê "passando fome", durante protesto contra o governo de Nicolás Maduro, em Caracas, Venezuela Imagem: Meredith Kohut/The New York Times

Ana Vanessa Herrero e Nicholas Casey

Em Caracas (Venezuela)

08/09/2017 04h00

A escassez de alimentos já era comum na Venezuela, por isso Tabata Soler sabia dolorosamente bem como navegar pelo mercado paralelo do país para conseguir produtos básicos como ovos e açúcar. Mas então veio uma escassez que ela não pôde resolver: de repente não havia gás de cozinha à venda.

Então, durante várias noites neste verão, Soler preparou o jantar sobre uma fogueira improvisada com caixotes de madeira quebrados e embebidos em querosene para alimentar sua família estendida de 12 pessoas.

"Não tive alternativa", disse Soler, uma enfermeira de 37 anos, enquanto procurava novamente gás para seu fogão. "Voltamos ao passado, quando cozinhávamos com lenha!"

Cinco meses de turbilhão político na Venezuela levaram ondas de manifestantes às ruas, deixaram mais de 120 mortos e desencadearam uma ampla repressão contra os dissidentes pelo governo, que muitos países hoje consideram uma ditadura.

Uma poderosa assembleia de fiéis ao presidente Nicolás Maduro dirige o país com poucos limites à sua autoridade, prometendo perseguir os adversários políticos como traidores enquanto ela reescreve a Constituição para favorecer o governo.

Mas enquanto o presidente tenta abafar a oposição e recuperar o controle firme do país, o colapso econômico, que se aproxima do quarto ano, continua ganhando força, deixando Maduro, seus seguidores e o país em uma posição cada vez mais precária.

A Petróleos de Venezuela (PDVSA), companhia estatal de petróleo que é a principal fonte de receitas do governo, relatou em agosto que seu rendimento caiu mais de 33% no ano passado, em meio à queda da produção --parte de um longo colapso que sufoca a oferta de dólares no país, necessários para importar comida e outros bens.

A queda da produção reflete tendências em quase todos os produtos de que o país depende, de batatas e milho à fabricação de automóveis, com menos de 1.100 carros feitos no país neste ano até julho.

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Cliente passa por prateleiras vazias em mercado em Cumaná, Venezuela
Imagem: Meredith Kohut/The New York Times

Enquanto a produção cai, os preços continuam subindo com a inflação. O preço dos alimentos na Venezuela aumentaram mais de 17% somente em julho, segundo o principal grupo não governamental que acompanha a inflação, agravando uma crise alimentar que já destruiu a imagem da Venezuela, país rico em petróleo que até poucos anos atrás era a inveja econômica de muitos na região.

"Isso não tem precedentes", disse Ricardo Hausmann, um economista da Universidade Harvard e ex-ministro do Planejamento da Venezuela, afirmando que os declínios econômicos são piores que os do México durante o colapso econômico dos anos 1990, da Argentina nos anos 2000 e de Cuba depois da queda da União Soviética.

Em um período de nove dias no final de julho e início de agosto, o preço do bolívar, a moeda nacional, caiu pela metade em relação ao dólar no mercado paralelo, cortando os rendimentos de pessoas que ganham o salário mínimo ao equivalente a RS 17 por mês.

Embora o governo tenha aumentado o salário mínimo constantemente, ele não acompanhou a inflação, levando a uma queda de 88% nos últimos cinco anos na receita dos trabalhadores que dependem dele, disse Hausmann.

Luis Palacios, um ex-guarda de segurança de 42 anos na capital, Caracas, enfrentou a fome quando a inflação dizimou seu salário. Ele passou um ano vendo sua família emagrecer, até que sua mulher levou os dois filhos, de 5 e 1 anos, à Colômbia cinco meses atrás, para conseguir mais comida.

"Minha filha estava muito magra", disse ele. "E não pudemos comprar remédio quando ela ficou doente."

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Grupo acende velas no local onde o manifestante Neomar Lander foi morto durante protesto em Caracas
Imagem: Meredith Kohut/The New York Times

A mulher decidiu não voltar. Palacios, incapaz de pagar a passagem de ônibus para ir trabalhar, deixou o emprego há um mês porque a inflação tornou seu salário quase nulo. Sua indenização do trabalho perdeu a maior parte do valor durante os 15 dias que ele teve de esperar para recebê-la.

"Perdi 7 quilos em poucos meses, e desde que minha família partiu só consigo pensar nos meus filhos", disse ele.

O dinheiro perdeu tanto valor que desapareceu de alguns lugares, como o ponto de táxi de Mariel Bracho no principal aeroporto do país. Bracho só aceita cartões de débito ou transferências bancárias, e ainda tem um cartaz com os preços de um ano atrás, porque a empresa não conseguiu papel e tinta para imprimir um novo.

"Mas nem há mais muita gente que pega táxi no aeroporto", disse ela, por causa do custo.

É um padrão que deixa pessoas como Olympio Jiménez, um garçom de 49 anos em Caracas, aterrorizado sobre seus salários e gorjetas. Eles estão desaparecendo, diz, porque mesmo quando as pessoas têm condições de comer em um restaurante não podem carregar dinheiro suficiente para deixar uma pequena gratificação sobre a mesa.
A solução de Jiménez: ele dá aos clientes seu nome completo, endereço e número da conta bancária, para que eles lhe façam uma transferência.

"Já me deram até 40 mil bolívares dessa forma", disse ele, que são cerca de R$ 8 à taxa atual no mercado paralelo, mas exigiriam uma pilha enorme de dinheiro em um país onde a principal nota ainda é a de 100 bolívares.

Muitos economistas atribuem a inflação a problemas na companhia de petróleo.

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Garrafas de água ocupam prateleiras de geladeira da família de Araselis Rodríguez e Nestor Daniel Reina, em Cumaná
Imagem: Meredith Kohut/The New York Times

Conforme sua produção diminuiu, tornou-se cada vez mais dependente do mundo externo, de companhias estrangeiras para bombear o petróleo e até dos EUA pelo óleo cru usado na refinagem. Hoje o uso dessas empresas estrangeiras está gerando contas elevadas num momento em que a empresa tem pouca receita para pagá-las.

A resposta do governo venezuelano foi pagar em bolívares sempre que possível e imprimir mais dinheiro. Em uma única semana no final de julho, a base monetária do país, ou a quantidade de dinheiro existente, aumentou 13%, o maior índice já visto por muitos economistas. Enquanto imprimir dinheiro reforça a companhia de petróleo em curto prazo, reduz o valor da moeda para os venezuelanos.

"Os bolívares hoje são como cubos de gelo", disse Daniel Lansberg- Rodríguez, chefe do escritório na América Latina da Greenmantle, uma firma de assessoria macroeconômica, e professor na Escola de Administração Kellogg da Universidade Northwestern, nos EUA. "Se você for até a geladeira e pegar um, precisa usá-lo imediatamente, porque logo terá desaparecido."

Para o dono de uma companhia de fogos de artifício em Caracas, um dos principais desafios foi transformar os bolívares que recebe em dólares. No ano passado, ele encontrou pessoas vendendo dólares, disse o proprietário de 34 anos, que não quis dar seu nome porque trocar moeda no mercado paralelo é ilegal. Hoje ele ainda encontra negociantes nesse mercado, disse, mas é muito mais caro.

A maioria dos venezuelanos, como Soler, a enfermeira que começou a cozinhar com lenha, não tem acesso a dólares.

Desde que ficaram sem gás neste verão, os parentes de Soler só conseguem encontrá-lo esporadicamente e o compram assim que aparece, porque o valor do dinheiro se deprecia rapidamente. Se o gás acabar de novo, a família diz que está preparada, pois aprendeu a cozinhar com lenha no quintal.

Mas o maior medo de Soler, segundo ela, é que o preço vá além do que pode pagar.

"Antes era barato; você só tinha que esperar seis horas na fila", contou Soler. "Hoje você encontra, mas é caro."