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Desrespeito às leis enfraquece direitos de quem compra imóvel na planta

Especial para o UOL

10/06/2014 06h00

Comprar imóveis na planta sempre envolve riscos, como atrasos, obras mal construídas até a temida quebra da incorporadora. Para minimizar esses possíveis percalços, a legislação que trata das incorporações  imobiliárias, a Lei nº 4.591 - originalmente criada em 1964 e frequentemente atualizada ao longo dos anos - tem elementos que resguardam os direitos dos adquirentes.

A mais importante atualização instituiu o patrimônio de afetação, ajuste legislativo impulsionado pela quebra da extinta Encol e que criou segmentos independentes no patrimônio global das empresas - separando cada empreendimento em uma empresa isolada, cujo patrimônio e contabilidade operam de forma dissociada do grupo econômico que a detém.

Existem ainda artigos que estabelecem a obrigatoriedade de informar os promitentes compradores sobre o andamento da obra, criam mecanismos para notificação e substituição do incorporador em caso de paralisação ou retardamento injustificado das obras, determinam o pagamento de indenizações pelos atrasos, proíbem a alteração do projeto inicial, instituem comissão de obras e estabelecem a obrigatoriedade de obtenção de documentos. Enfim, trazem uma série de garantias aos adquirentes.

Além da legislação específica, a Constituição Federal também assegura os direitos dos compradores. Elevada ao grau máximo legislativo, tida como cláusula pétrea, que estabelece em seu artigo 5º o dever do Estado em estabelecer mecanismos de proteção do consumidor, garantia essa reprisada no artigo 170 da Carta Magna como princípio geral da atividade econômica.

E ainda o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor estabelecem princípios norteadores do direito. Entre outros, estão dever de boa-fé contratual, dever de lealdade e transparência, princípio do equilíbrio contratual, dever de informação, dever de indenizar do causador do dano, nulidade de cláusulas abusivas, limitações aos contratos de adesão, clareza da publicidade.

Desta forma, o que aflige os consumidores brasileiros de forma geral e também aqueles que adquirem imóveis na planta não é a falta de lei, mas a falta de aplicação efetiva desta legislação por um Judiciário enfraquecido por diversos aspectos e pela imoralidade generalizada que permeia grande parte dos fornecedores.

Aplicação das leis

Estigmatizada pela “lei de Gerson”, nossa sociedade é vítima e vilã de comportamentos sociais que estimulam a prática comercial lesiva. Nesta, levar vantagem e obter lucro a qualquer custo é uma realidade em um país da impunidade, no qual as leis são reiteradamente desrespeitadas e, em muitos casos, distorcidas para atender os interesses de poderosos grupos econômicos.

É fácil listar casos recentes de escândalos envolvendo construtoras, poder público e corrupção. Nos últimos meses, só na capital paulista, várias falcatruas vieram à tona: a máfia dos alvarás, das outorgas, do ISS, do habite-se, e por aí vai.

Todas girando bilhões e tudo “voltando à normalidade” em pouco tempo, sem envolvidos punidos de forma exemplar. Em Brasília, o ex-governador do Estado, ou seja, o mais alto cargo do executivo estadual, foi preso pelo mesmo motivo: corrupção para regularização de obras.

Aliás, esta prisão provavelmente já deverá ter acabado quando este texto for publicado. Tudo vira pizza e o crime compensa. Essa é a lógica dos empreendedores neste país chamado Brasil.

Talvez uma nova legislação, com todos os pontos concentrados em um só texto - direto, objetivo e sem necessidade de amparo em leis esparsas - facilitasse sua aplicação, mas ainda assim seria preciso sua aplicação efetiva.

Além disso, não se pode perder de vista que as leis são elaboradas por parlamentares, que em grande parte são alvo de denúncias de corrupção. Elaborar uma nova lei, no cenário atual, pode representar um risco de retrocesso para os consumidores que, de uma forma ou de outra, são bem assistidos pela legislação existente.

Outra possibilidade seria a criação de uma agência reguladora, responsável pela fiscalização dos contratos e com o objetivo de coibir abusos na redação dos documentos e da contratação. A função das agências é regular e/ou fiscalizar a atividade de determinado setor da economia de um país. Na teoria, sua estrutura deve ser técnica e sem intervenção política em sua gestão.

Apesar dessa isenção que devem ter seus dirigentes, eles são nomeados pelo presidente da República após prévia aprovação pelo Senado Federal.

Portanto, para essa solução também esbarramos na questão da eficiência e da lisura. Diversas agências atuam no país e o resultado desse trabalho é por vezes questionável, além de não escapar de denúncias de desvios e corrupção.

Enfim, antes de qualquer mudança legislativa ou implantação de qualquer órgão fiscalizador é essencial um severo choque de moralidade, comprometimento e ética nos governantes, lobistas e empresários.

Não adianta, e não precisa neste momento, mudar leis. É preciso mudar atitude e comportamento, além de um judiciário efetivo, que aplique com rigor a legislação vasta e de qualidade que já existe.

Nossa Constituição é moderna e ampla, nosso Código Civil tem pouco mais de uma década e nosso Código de Defesa do Consumidor é um dos mais avançados do mundo. Paradoxalmente, somos a população mais desrespeitada pelos fornecedores. Isso prova que errada não está a lei, mas a falha sistemática na sua correta aplicação.

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