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Intervenção estatal no Ecad é um erro e viola Constituição

Especial para o UOL

14/06/2014 06h00

Uma alegação recorrente utilizada pelos que defendem a constitucionalidade da Lei n° 12.853/2013, que promove uma forte intervenção do Estado, através do Ministério da Cultura, sobre o sistema de gestão coletiva de direitos autorais devidos pela execução pública de obras musicais, é que a existência de um monopólio legal em favor do ente arrecadador desses direitos – o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) – exigiria a criação de um mecanismo de controle estatal.

Essa alegação enfrenta, inicialmente, um problema de premissa: não existe monopólio legal em favor do Ecad. Ao contrário, antes e depois da nova lei, os titulares de direitos autorais são livres para exercer seus direitos pessoal e diretamente - seja efetuando a cobrança, seja estabelecendo o preço pelo licenciamento de seus direitos.

Não se pode negar, no entanto, que a existência de múltiplos titulares sobre uma mesma obra e de milhares de usuários de música em todo o território nacional tornam muito mais efetivo o exercício dos direitos através do sistema de gestão coletiva, ou seja, quando realizado através do Ecad.

Por isso, ainda que não haja um monopólio legal, apenas em situações excepcionais os titulares de direitos autorais teriam interesse em exercer seus direitos direta e pessoalmente.

O segundo problema dessa alegação é que não há qualquer indício de que esse suposto monopólio seja um problema. Monopólios são problemáticos apenas quando capazes de assegurar ao monopolista o poder de cobrar preços excessivamente altos.

Para esse fim, o monopolista reduz a oferta de seus produtos, forçando uma escassez que impulsiona o preço para cima, pela simples aplicação da lei da oferta e da procura. Entretanto, o Ecad (ou as associações que o integram) não tem como reduzir a oferta de seu produto: música. Os titulares de direitos autorais – compositores, intérpretes, músicos – não podem prescindir da execução pública de suas obras, seja nos pontos de execução mais distantes, seja, especialmente, nas grandes redes de rádio ou televisão.

Uma suposta negativa do Ecad em licenciar, por exemplo, uma emissora de TV representaria um incentivo para que os titulares individualmente concedessem licenças específicas de suas obras. Ou seja, o sistema de gestão coletiva só funciona quando não limita a oferta e assegura a possibilidade de execução pública de todas as obras musicais.

Estudos, como o apresentado pelo ex-presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), Gesner Oliveira, em audiência pública no STF, mostram que os valores cobrados pelo Ecad não são excessivos.

Ao contrário, tais valores são substancialmente inferiores ao preço que os consumidores estariam dispostos a pagar para ouvir música. A gestão coletiva, na realidade, reduz os custos relacionados à cobrança e distribuição de direitos autorais e assegura o pagamento de uma remuneração a artistas menos conhecidos - justamente aqueles que mais dependem dos direitos autorais de execução pública, pois não têm receitas importantes decorrentes de publicidade ou shows.

Regulação estatal

O terceiro problema é que o controle direto pelo Estado não é a única forma, nem necessariamente a mais eficiente, de lidar com os problemas decorrentes dos monopólios.

De acordo com a Constituição, a regulação estatal sobre atividades privadas – mesmo em regime de monopólio – é sempre subsidiária e proporcional, devendo se ater aos limites estritamente necessários para atender ao fim que justifica essa forma de intervenção na liberdade dos indivíduos.

Sempre que há um meio menos gravoso de se atingir o fim almejado, esse meio menos gravoso deve ser adotado. No que toca à atuação do Ecad, parece certo que, mesmo se houvesse abuso – e não há –, existem outras formas de controle mais eficazes do que a criação de uma verdadeira “Ecadbras”, a cargo do Ministério da Cultura.

De um lado, existem as autoridades de defesa da concorrência, que têm competência legal para fiscalizar e punir atos de monopolistas eventualmente abusivos. De outro, e ainda mais importante, existe o Poder Judiciário, pronto para dirimir conflitos entre usuários e titulares de direitos autorais.

Aliás, ano após ano a correção da conduta do Ecad vem sendo reconhecida em diversas decisões e por diversos tribunais, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça.

O maior problema da defesa da Lei n° 12.853/2013 baseada na premissa incorreta da existência de um monopólio legal é que as regras nela estabelecidas não têm nenhuma relação com a existência de um monopólio legal.

Ora, a existência de um suposto monopólio legal do Ecad não é justificativa para tirar dos titulares de direitos autorais a liberdade para estabelecer as regras que devem vigorar nos estatutos das associações de que fazem parte.

Também não é razão para que as associações, para exercerem seu objeto social, precisem ser habilitadas (e possam ser desabilitadas, sem necessidade de decisão judicial) pelo Ministério da Cultura.

Não tem nenhuma relação com a criação de um cadastro de obras que permite ao governo ter um controle absoluto sobre os autores de cada canção e os valores por eles recebidos.

Nada tem a ver com a divulgação pública de dados sobre a execução de obras musicais que permitem a qualquer interessado saber quanto foi pago a cada artista, não tem pertinência com a regra que expropria de herdeiros e cessionários de direitos autorais o poder de votar nas associações de que fazem parte etc.

Enfim, a alegação de que a nova – e inconstitucional – lei se deve à necessidade de controle pelo Estado do monopólio legal do Ecad, embora impressione à primeira vista, é um equívoco.

Trata-se de uma conclusão errada, que tem origem em uma falsa premissa. E mesmo que premissa e conclusão fossem verdadeiras, não seria a Lei n° 12.853/2013 a resposta adequada do legislador, posto que a intervenção estatal dela decorrente vai além, muito além, da questão do monopólio e viola de maneira direta e frontal diversas regras e princípios da Constituição Federal.

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