Topo

'Casal de três' alimenta debate sobre nova família na Suécia

Erik, Linda e Hampus vivem juntos há dois anos e cuidam de seus cinco filhos. "Somos uma família de oito pessoas: mamãe, papai, papai e cinco filhos. Vivemos em um relacionamento de três adultos, no qual os três se amam" - Reprodução/TV4/BBC
Erik, Linda e Hampus vivem juntos há dois anos e cuidam de seus cinco filhos. "Somos uma família de oito pessoas: mamãe, papai, papai e cinco filhos. Vivemos em um relacionamento de três adultos, no qual os três se amam" Imagem: Reprodução/TV4/BBC

Claudia Wallin

De Estocolmo para a BBC Brasil

21/11/2014 08h40Atualizada em 21/11/2014 16h07

"Somos uma família de oito pessoas: mamãe, papai, papai e cinco filhos. Vivemos em um relacionamento de três adultos, no qual os três se amam".

A declaração feita pela sueca Linda Fridland, em um programa do canal de televisão TV4, criou uma polêmica sobre o conceito tradicional de família na Suécia, debate que também vem ocorrendo no Brasil.

Linda Fridland e o marido Erik viviam juntos havia 15 anos quando conheceram, em 2012, Hampus Engström na empresa de táxi em que trabalham. Foi quando os três se apaixonaram.

Linda e Erik já tinham quatro filhos. Hampus era pai de uma menina de três anos e se separaria da mulher pouco depois.

Naquele ano, todos passaram a viver juntos na mesma casa em Strömsund, no norte da Suécia.

"A família formada por um homem, sua esposa e seus filhos ainda é o conceito predominante. Mas, hoje em dia, as pessoas estão mais abertas ao fato de que existem outras formas de se viver", diz Linda, que criou um blog para contar como é a relação a três.

O caso de Linda e seus dois maridos ainda é, no entanto, um tabu, mesmo na progressista Suécia, onde várias fronteiras se romperam ao longo dos anos no tradicional conceito de família.

Na literatura infantil sueca, tornaram-se comuns as histórias de filhos de casais homossexuais – crianças com dois pais ou duas mães.

Desde 2003, casais homossexuais têm o direito de adotar crianças, e lésbicas têm acesso a subsídios estatais para tentar engravidar por meio de tratamentos de fertilização.

A Suécia foi o primeiro país do mundo a aprovar, em 1944, uma lei que legaliza a homossexualidade e que perdura até hoje - na Rússia, atos homossexuais foram legalizados apenas entre 1917 e 1930, ficando proibidos até 1993, quando foram novamente autorizados. Em 2009, o governo sueco também legalizou o casamento gay.

Mas a noção de poliamor e de poligamia ainda enfrenta barreiras, como demonstram as várias páginas de artigos de jornais dedicados na Suécia a debater o caso de Linda, Erik e Hampus.

"O que parece incomodar mais as pessoas é o fato de ser uma relação entre uma mulher e dois homens, e não o contrário. É como se pensassem 'ela não se contenta com um só'. Mas é um equívoco", destacou Linda em entrevista ao jornal Aftonbladet.

"Não sou eu que tenho dois maridos. Somos nós três que temos dois cônjuges."

Naturalidade

No programa Jenny Strömstedt, da TV4, Hampus disse que a pergunta mais frequente é sobre como as crianças reagem e se sentem nesta situação.

"Conversamos com cada uma delas. Contamos que viveríamos juntos, e elas reagiram com naturalidade", disse Linda.

Hampus acrescentou que crianças não têm preconceitos: "Elas são abertas a diferentes formas de se viver".

Para Klara Hellner Gumpert, especialista em psiquiatria infantil do prestigiado Instituto Karolinska, da Suécia, a mudança gradual de valores na sociedade provavelmente tornará mais natural e menos problemática a aceitação de novos conceitos de família.

"Em certos aspectos, pode ser difícil para uma criança viver em uma situação como esta. Pode sofrer com comentários maldosos de coleguinhas, por exemplo", disse a psiquiatra à BBC Brasil.

"Por outro lado, vejo frequentemente no consultório crianças com problemas causados por pais ausentes, violentos ou que abusam do álcool. Pais convencionais podem prejudicar os filhos de muitas maneiras. Será que é mais difícil para uma criança viver em uma família com uma mãe e dois pais?"

A psiquiatra diz não considerar uma relação algo condenável, indesejável ou prejudicial para os filhos.

"Há muitos tipos diferentes de família. Algumas crianças crescem com uma mãe solteira, outras são criadas por avós doentes. Se uma relação a três é a forma de algumas pessoas serem felizes, respeito a escolha", destaca Gumpert.

"Mas estas pessoas devem ter consciência de que estão divergindo do conceito normal de família e, por isso, devem lidar cuidadosamente com as crianças em relação a isso. O mais importante para qualquer criança, em qualquer forma de família, é o amor, a atenção e o cuidado que recebem dos adultos que as cercam."

Conceito em formação

Na família de Linda, Erik e Hampus, novos padrões vão sendo formados aos poucos.

Os três têm responsabilidade para com as cinco crianças. Na escola dos filhos de Linda e Erik, o diretor deu permissão especial para que Hampus possa se envolver no seu desenvolvimento, como participar das reuniões com professores.

Na cozinha de casa, foi colocada uma grande mesa com oito cadeiras. Na lavanderia, foi preciso instalar uma nova máquina de lavar, com capacidade para oito quilos de roupas. O quarto de dormir dos adultos fica ao lado da sala de estar.

A reação dos colegas das crianças, segundo Hampus, têm sido natural. "Eu e Erik levamos as crianças a uma aula de esportes, e um coleguinha delas disse: 'Vocês têm dois pais? Bacana!'", conta ele.

No entanto, reação dos familiares foi menos amistosa – especialmente dos pais de Erik, que romperam com o filho. "É difícil dizer por que eles fizeram isso", disse Erik à apresentadora Jenny Strömstedt. "Acho que sentem vergonha."

Linda diz que perdeu a melhor amiga, com quem costumava conversar várias vezes por dia.

"Mas, no geral, a reação das pessoas tem sido melhor do que esperávamos", disse ela.

Problemas

Resta agora ao trio lidar com os problemas enfrentados por um novo modelo de família em uma sociedade feita para funcionar com dois cônjuges.

Linda e Erik são casados legalmente e têm direito de herdar os bens um do outro. Mas não teriam direito aos bens de Hampus, que também não poderia ser herdeiro de Erik e Linda.

A solução será escrever um testamento, a fim de garantir os direito de herança entre os três.

Eles gostariam de se casar oficialmente, mas a lei sueca não reconhece a poligamia.

Há dois anos, o Partido do Centro (Centerpartiet) chegou a incluir em seu programa de governo uma proposta para reconhecer legalmente o casamento poligâmico.

A proposta provocou uma tempestade no debate em torno dos novos conceitos de família e acabou sendo retirada da versão final do programa do partido.

Mas o movimento jovem do Centerpartiet permanece comprometido com a ideia. "Trata-se de garantir que todos os cidadãos sejam iguais perante à lei", observa a presidente do movimento, Hanna Wagenius.

"Já existem muitas pessoas vivendo relações não-convencionais. Se alguém ama mais de uma pessoa, essa pessoa deve ter os mesmos direitos e a mesma proteção legal que aqueles em uma relação monogâmica."

Para Hanna, é uma questão de tempo a sociedade ver relações poligâmicas como algo normal.

"Não há nenhum argumento razoável contra este tipo de relação. Só não estamos acostumados a enxergar as coisas desta forma", opina.

Linda e seus dois maridos concordam. Para eles, uma legislação mais flexível ajudaria não só a eles, mas também outras pessoas que não se enquadram no conceito tradicional de família.

"Da forma como as coisas são hoje, olham para nós e pensam estamos fazendo algo ilegal", observa Linda. "Mas, se a lei dissesse que nossa forma de viver é válida, muitos olhariam de forma mais natural para outros tipos de união."

Estatuto da Família é alvo de polêmica no Brasil

Um projeto de lei apresentado no ano passado pelo deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE) cria o "Estatuto da Família", que traz em seus artigos a definição da "entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes".

O projeto ainda institui a "obrigação do Estado de dar condições mínimas para sua sobrevivência, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam a convivência saudável entre os seus membros e em condições de dignidade".

Para analisar o projeto, a Câmara dos Deputados criou uma comissão especial e realizou audiências públicas. Esta comissão elegeu como relator o deputado Eduardo Fonseca (PROS-DF). Em 17 de novembro, Fonseca apresentou um parecer favorável ao projeto de lei.

A Câmara também colocou no ar uma enquete em seu site em que os cidadãos deveriam votar se concordavam ou não com o conceito de família previsto no projeto.

A enquete foi alvo de grande mobilização popular por aqueles a favor e contra o projeto e teve votação recorde, de mais de 4,3 milhões de votos até o momento. Em 19 de novembro, o "não" vencia com 51,04% dos votos.

Ainda não há data prevista para a votação do projeto de lei pela comissão especial. Se aprovado, o projeto seguirá para análise no Senado.