Estudos sugerem que transplante de flora intestinal pode combater a obesidade
Em nosso corpo, temos dez vezes mais bactérias do que células. Grande parte delas vive em nosso sistema gastrointestinal. O fato já é conhecido, mas só recentemente passou a despertar interesse da ciência e da medicina. Por um longo período, especialistas acreditaram que a relação era simplesmente comensal.
“Achávamos que cada um tirava proveito da situação sem prejudicar qualquer um dos lados”, diz o diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Mario José Abdalla Saad.
Os médicos, ele explica, pensavam no organismo humano sem a influência direta desta flora intestinal e um dos motivos era a dificuldade de estudá-la. As pesquisas eram realizadas por meio da cultura de fezes, um método rudimentar que não traz todas as informações de forma precisa.
Na última década, a medicina conseguiu identificar, por meio do sequenciamento do DNA, algumas das principais bactérias que existem no organismo. Em 2006, um estudo publicado pela revista Nature mostrou que obesos e magros tinham floras intestinais diferentes. O estudo chamou a atenção de pesquisadores do Laboratório de Investigação Clínica em Resistência à Insulina (Licre), da Faculdade de Medicina da Unicamp.
“Começamos a investigar esta relação para saber se a flora intestinal pode induzir à obesidade e se havia um tipo de flora que protegesse contra ela”, conta Saad. A equipe brasileira publicou um artigo em 2011 na revista PLoS Biology, que evidencia uma situação em que as bactérias da flora intestinal podem originar prejuízos para o organismo humano.
Em certas situações, um grupo de bactérias intestinais causa um desequilíbrio metabólico que leva ao desenvolvimento de obesidade e diabetes, problemas que afeta milhões de pessoas no mundo. “Entendemos que a obesidade é uma doença complexa, não há uma causa comum para todos”, afirma o médico.
Estudos com camundongos
Em um primeiro experimento em camundongos, a equipe da Unicamp reduziu a flora intestinal drasticamente, de 60% a 90% - aplicando antibióticos por uma semana em animais com obesidade. Nestes animais, alterações metabólicas como glicemia elevada, resistência à insulina, processo inflamatório subclínico - malefícios consequentes da obesidade e que levam ao diabetes e a arteriosclerose - foram reduzidas.
“Este experimento nos levou a entender que a flora intestinal deve, sim, contribuir para as consequências da obesidade”, concluiu Saad. O experimento provou que existe uma influência da microbiota gastrointestinal na obesidade, mas não indica o uso de antibióticos para tratamento da doença. “Não estamos propondo o uso de antibióticos para tratar obesidade. No estudo, os medicamentos serviram para provar o conceito”, explica Saad.
Com a prova de que a flora intestinal contribui para as más consequências da obesidade, a equipe da Unicamp decidiu, então, estudar a correlação entre a microbiota intestinal, a inflamação e a resistência à insulina. Receberam da Universidade Federal de Minas Gerais animais modificados geneticamente para não expressar na membrana de suas células uma proteína: o receptor Toll-Like 2 ou TLR2, que faz parte do sistema imunológico e identifica componentes estranhos ao organismo e, como consequência, dispara uma inflamação.
Na mesma época, alguns pesquisadores do Canadá e da Suíça haviam demonstrado que os camundongos sem esta mesma proteína eram protegidos da obesidade e do diabetes, mesmo alimentados com uma dieta com dez vezes mais gordura que a usual. “Para a nossa surpresa, aqui no Brasil aconteceu o contrário. O animal submetido a este experimento ficou obeso e diabético, mesmo recebendo uma dieta comum”, afirma Saad.
Com os resultados conflitantes, decidiram investigar a microbiota destes animais e notaram que a flora dos camundongos brasileiros era muito diferente da flora intestinal dos animais do exterior. “Este estudo mostrou que, embora o animal fosse geneticamente protegido contra a obesidade e o diabetes, sua flora intestinal pode desenvolver essas doenças”, conta.
A bactéria capaz de desencadear essa diferença é da família Firmicutes. O aumento da proporção deste tipo de bactéria na microbiota parece influenciar o surgimento de obesidade.
Os mecanismos de ação destas bactérias são vários: por exemplo, ao metabolizar a celulose, presente em alimentos de fibras - a bactéria a transforma em calorias que a pessoa pode absorver em forma de ácido graxo. Ou seja, ela pode engordar mesmo comendo alface. Elas também podem interferir no aproveitamento da insulina, dificultando o uso da glicose, que acaba sendo convertida em gordura e estocada.
Há, também, na membrana celular das bactérias, lipídios que podem ativar receptores no organismo. Assim, mesmo quando a bactéria morre, o organismo absorve seus restos mortais e os mesmos podem ativar o crescimento de tecido adiposo.
Às vezes não é a própria bactéria que causa a reação, mas sua interação com a parede do intestino, fazendo com que a inter-relação das células do intestino mude a capacidade de absorver uma ou outra substância. “O estudo mostrou que o fator ambiental pode se sobrepujar à proteção genética contra obesidade e diabetes. Ou seja, o ambiente em que a pessoa vive propicia a uma flora diferente que causa isso”, avalia Saad.
Transplante de flora intestinal
Outro experimento da equipe da Unicamp foi transplantar em um camundongo estéril - protegido de contato com bactérias em uma bolha - uma flora intestinal de animal magro e segui-lo por oito semanas. Notaram que este animal engordou pouco. Em outro, também estéril, transplantaram uma flora intestinal de animal obeso, e este engordou bem mais do que o primeiro.
Centros de estudos na Europa e nos Estados Unidos já fazem transplante de microbiota em seres humanos, mas de modo experimental, para tratar infecções graves. “Pode ser que o transplante da flora intestinal possa ser um dos tratamentos contra obesidade, mas ainda temos muitos estudos a fazer para que isso realmente seja proposto”, disse Saad.
Para ele, o ideal seria conseguir identificar entre os trilhões de bactérias da nossa microbiota quais são deletérias e nos livrar delas, substituindo-as por bactérias do bem. “Estamos aprendendo esta abordagem de modular a flora intestinal, mas já sabemos que podemos ajudar o nossos sistemas imunológico e metabólico por meio dela”, conclui Saad.
Origem complexa
As descobertas ajudam os profissionais a repensarem programas de emagrecimento. “Com pesquisas como esta podemos afirmar que a obesidade é capaz de desencadear uma série de alterações hormonais que agravam o quadro. É uma doença séria, multifatorial e deve ser tratada com seriedade e respeito, não apenas como algo que aconteça a pessoas sem falta de vontade ou indisciplinadas nutricionalmente”, afirma a nutricionista Alessandra Rodrigues, também colaboradora do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, a modulação da microbiota ajudará no tratamento de obesidade.
Para a nutricionista e docente do curso de Nutrição do Centro Universitário São Camilo, Cinthia Roman Monteiro, pesquisas assim mostram a complexidade da origem da obesidade. “Deve ser tratada em conjunto com uma alimentação saudável e prática de exercícios físicos”, afirma.
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