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Nenhum remédio é livre de efeitos colaterais; veja mitos e verdades

Rosana Faria de Freitas

Do UOL, em São Paulo

07/04/2014 07h07

Não são poucas as pessoas que se tornam adeptas habituais de remédios ditos ‘inofensivos’, em busca de respostas rápidas para problemas corriqueiros de saúde. E correm riscos, pois a automedicação, na maioria das vezes, é perigosa. Embora alguns remédios apresentem, de fato, poucos riscos, e sua compra é facilitada por estarem ‘do lado de fora’ do balcão da farmácia, é preciso cautela.

“Tal conjunto de fatores acaba predispondo ao uso até mesmo abusivo de algumas drogas. Todavia, como nenhuma é de fato isenta de ameaças, eventualmente acontecem adversidades”, salienta o cirurgião geral Lucas Zambon, diretor do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente. Ele explica que, como esse tipo de acontecimento fica “diluído” entre o grande número de pessoas que tomam tais remédios, há uma falsa sensação de segurança.

Com ele concorda o neurologista da USP (Universidade de São Paulo), Flávio Augusto Sekeff Sallem, alegando que fármacos são drogas que agem em vários sistemas do corpo. “Remédios não são produtos”, enfatiza.

No Brasil, de acordo com a IMS Health, consultoria especializada em dados de saúde, o item mais comercializado em 2012 foi o descongestionante nasal Neosoro (cloridrato de nafazolina), que contém até página em redes sociais como o Facebook (“Clube dos viciados em Neosoro”).

Embora não esteja associado a nenhuma enfermidade grave como o câncer, o descongestionante pode aumentar a carga sobre o coração. Por isso, deve ser utilizado com precaução em pacientes que usam determinados medicamentos ou que apresentam deficiências cardíacas – hipertensão, arritmias, disfunções no coração. Não é livre de riscos e não deve ser empregado por períodos prolongados sem orientação médica.

Os dez mais

Depois do Neosoro vem Puran T4 (hormônio tireioidiano levotiroxina sódica), Salonpas (analgésico e anti-inflamatório salicilato de metila), Ciclo 21 (anticoncepcional, genérico etinilestradiol + levonorgestrel), Microvlar (anticoncepcional, etinilestradiol + levonorgestrel), Buscopan Composto (analgésico e antiespasmódico, escopolamina), Rivotril (anticonvulsivante e ansiolítico, clonazepam), Dorflex (analgésico, cipirona ou orfenadrina), Glifage (antidiabético metformina) e Hipoglós (pomada para assaduras).

Sallem ainda cita outros bastante usados como Neosaldina (combinação de mucato de isometepteno, dipirona e cafeína, utilizada no alívio das dores de cabeça), Cialis (disfunção erétil, tadalafila,) Dipirona sódica (analgésico e eficaz na febre) e Metoclopramida (náuseas e vômitos).

Dados ‘internacionais’

Em relação ao consumo mundial, em uma lista de janeiro de 2012, Neosoro (descongestionante nasal) aparece encabeçando a lista como o remédio mais vendido no planeta. Porém, atualmente, há quem diga que outro, desta vez empregado para redução dos níveis de colesterol, é o campeão: Lipitor, fabricado pela farmacêutica norte-americana Pfizer. Seu princípio ativo é a atorvastatina.

Importante: há diferença na lista de medicações mais consumidas sem receita médica, e as com prescrição médica, explica Sallem.  “Em vários países do mundo, como nos Estados Unidos e no Canadá, há necessidade da receita para drogas tão comuns como a atorvastina, já que a legislação é mais severa”.

Há também variações entre as nações pesquisadas. De acordo com o site The Richest, as mais comercializadas sem receita, as chamadas OTC, ou over-the-counter (medicações de balcão, em tradução livre) nos EUA são: xarope para gripe (princípio dextrometorfan), descongestionante nasal (hidrocloreto de pseudoefedrina), antialérgico (cetirizina), Nicorette (usado como substituto do cigarro para se parar com o vício), ibuprofeno + relaxante muscular, dimenidrato (para vertigem e tontura), TruBiotics (suplemento probiótico restaurador da flora intestinal bacteriana), vitaminas (suplemento nutricional masculino), codeína (para dor) e comprimidos de cafeína (para pacientes com sonolência excessiva durante o dia).

Soluções a curto prazo

Sobre o ansiolítico Rivotril, Sallem sustenta que se trata realmente de uma das medicações mais consumidas no Brasil, mas não se encontra nas listas das mais usadas no mundo. “Sua fama se deve, entre outros fatores, à propaganda feita sobre o produto, ao conhecimento médico a respeito do mesmo e aos seus efeitos. É usado no tratamento da ansiedade e da insônia, situações comuns entre nosso povo. Seus principais concorrentes são o Lexotan (bromazepam), Frontal (alprazolam) e Olcadil (cloxazolam)”.

Já a obesidade se tornou uma epidemia mundial e preocupa os órgãos de saúde pública, sendo considerada uma doença multifatorial. O aumento da oferta de alimentos processados, o estresse e o sedentarismo estão entre outros fatores causadores do problema. 

“Em geral, as mulheres são consumidoras em potencial de medicamentos para emagrecer, nunca estão satisfeitas com o corpo e desejam sempre perder um ou dois quilos. No Brasil, sendo um país tropical onde existe uma exposição maior do corpo, estar em forma é uma questão de aceitação social”, observa a farmacêutica bioquímica Fernanda Chalabi, com título de especialista em Manipulação Alopática pela Anfarmag (Associação Nacional das Farmácia de Manipulação) e farmacêutica Coordenadora Técnica de Marketing da Farmácia de Manipulação Officilab.

“O Brasil é um dos países onde o consumo de moderadores de apetite bate recordes”, destaca Sallem. Ele lembra que existem três principais grupos de remédios para emagrecer: anorexígenos, sacietógenos e inibidores de absorção de gorduras. Os anorexígenos inibem o apetite, e têm em sua composição substâncias conhecidas como anfetaminas (que podem ser perigosas). O segundo grupo age no estímulo da sensação de saciedade: o indivíduo sente fome, mas com uma porção menor de alimentos fica satisfeito.

Já o terceiro atua na inibição da absorção intestinal de cerca de 30% da gordura ingerida, entretanto só ajuda se a pessoa come pouco (se come muito, os 30% que deixam de ser absorvidos podem não ser suficientes para a perda de peso).

"Trata-se de mais uma consequência do estilo de vida atual e de uma sociedade que quer soluções milagrosas e de curto prazo", destaca o clínico geral Lucas Zambon, do Hospital das Clínicas de São Paulo (HCSP). “Para controlar a ansiedade e perder peso, por exemplo, o ideal é você mudar seu estilo de vida, adequando sua alimentação e realizando atividade física periódica. O problema é que a maioria ou não quer ou não consegue impor tais alterações em seu cotidiano, optando por uma alternativa que ofereça, supostamente, um resultado mais rápido. Aí, quando querem perder peso, correm para alguma medicação ‘facilitadora’”.

Em relação aos ‘emagrecedores’ de uma maneira geral, há risco de gerarem efeitos colaterais cardíacos, como arritmias, além de predisposição ao desenvolvimento de quadros depressivos ou de psicose, entre outros. “O Xenical é bastante procurado para uso ainda, pois até pouco tempo podia ser comprado sem receita. Recentemente, porém, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) obrigou a necessidade de receita para compra. As vantagens do Xenical são mais do ponto de vista médico, dado o perfil de efeitos colaterais menos graves do que de outros medicamentos utilizados para emagrecer. Seus sinais se referem mais ao próprio trato digestivo, como diarreia, flatulência e dores abdominais”, diz Zambon.


Dependência química

Quando há dependência química, o medicamento começa a fazer parte do metabolismo do indivíduo. "Geralmente, são remédios ou drogas ilícitas que conferem sensação de prazer e bem-estar agindo no Sistema Nervoso Central, mas com grandes danos ao organismo. A retirada de uma droga desse tipo promove sintomas característicos de abstinência e deve ser tratado como doença”, enfatiza Fernanda Chalabi.

Para o neurologista Flávio Sallem, algumas medicações podem se relacionar com algum grau de dependência química, como os opiáceos e opioides (morfina, dolantina e meperidina). Já outras, como antidepressivos, antipsicóticos e esteroides, trazem o perigo de sintomas muitas vezes graves com sua parada abrupta, o que não caracteriza dependência química.

“Não deve ser confundida a dependência com o fenômeno de tolerância, observado com os benzodiazepínicos (famosos ‘faixas preta’). Neste caso, com o passar do tempo e uso do fármaco, o paciente vai necessitando de doses cada vez maiores para conseguir o mesmo efeito que antes ocorria com porções menores da medicação. Isso ocorre por alterações químicas na membrana da célula”, afirma Sallem.

Existem dois tipos principais de dependência química: a que se refere a drogas lícitas e a relacionada a drogas ilícitas. “Apesar de ser um aspecto importante, a diferença não é apenas de cunho legal. No caso das drogas lícitas, o efeito entorpecente existe em graus variados, mas tende a ser menor do que o das drogas ilícitas. Como exemplo, dificilmente alguém comete um crime devido ao uso de ansiolíticos (medicações que podem causar dependência com uso prolongado)”, salienta o psiquiatra e professor da Unifesp Moacyr Alexandro Rosa, diretor do Instituto de Pesquisas Avançadas em Neuroestimulação (Ipan).

Já o uso de cocaína e similares mais facilmente se incorpora a comportamentos inadequados ou criminosos. "Novamente chamo a atenção de que não é uma questão de legalidade. O álcool (substância lícita) também se associa a atitudes perigosas”, diz Rosa, acrescentando que a automedicação com substâncias que causam dependência é mais rara, pois a compra destas requer receita médica especial. Isso não impede, mas limita bastante o problema.

Problemas emocionais

O indivíduo liga a sensação de conforto ao seu uso e, por isso, deixá-lo provoca quadros de ansiedade, sensação de vazio, dificuldade de concentração e mal-estar. “É a dependência psicológica agindo, sem dúvida”, diz a bioquímica Fernanda Chalabi. O nível educacional parece ter influência significativa, porém há outros gatilhos.

“Muitas pessoas com nível elevado têm o hábito da automedicação. Achar que a pessoa que atende na farmácia sabe diagnosticar e orientar é um erro gravíssimo. Muitas vezes nem é farmacêutico e, mesmo este, apesar de seu conhecimento em farmacologia, não tem formação médica”, alerta Rosa.

Importante: existe um quadro psiquiátrico clássico chamado de hipocondria, no qual as pessoas acreditam ter uma doença grave. “Nestes casos, pode haver automedicação ou não. Muitas vezes, procuram diversos médicos, pois nenhum consegue ‘descobrir’ sua doença”, afirma Rosa.

Fernanda Chalabi completa dizendo que, num país carente como o nosso, com saúde pública deficiente e planos de saúde caros e sem padrão de atendimento, o estado psicológico é muito importante. “É como se as condições do paciente melhorassem só porque ele está ‘tomando alguma coisa’. É o chamado efeito placebo, ou seja, mesmo que o fármaco não seja indicado corretamente ou na dose certa, o simples fato de estar ingerindo já produz um efeito positivo”.