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Susto, preconceito e integração: homens contam como é ser parteiro

Raphael segura Raphael, um dos dois bebês batizados com seu nome - Acervo pessoal
Raphael segura Raphael, um dos dois bebês batizados com seu nome Imagem: Acervo pessoal

Stefhanie Piovezan

Colaboração para o UOL

04/12/2017 04h00

A empresária Deise Nascimento Pim, 27, levou um susto quando soube que havia um homem na equipe de obstetrizes que estava prestes a contratar para o nascimento de Julia, mas hoje elogia o trabalho de Raphael Marques de Almeida Rosa da Cruz, 26, um dos 12 homens formados desde 2008 pelo curso de obstetrícia da USP (Universidade de São Paulo).

A profissão está tão ligada à imagem de mulher que, ao buscar pela palavra obstetriz no dicionário Houaiss, o substantivo feminino é indicado como sinônimo de parteira, também no feminino.

Nunca tinha visto um obstetriz homem. Fiquei com um pouco de receio pelo meu marido, como se sentiria, o que pensaria. Mas ele passa muita confiança, é sempre muito profissional, foi o melhor parteiro.”

Deise conta que decidiu fazer o parto em casa, e os alarmes falsos aumentavam sua ansiedade. Nessas ocasiões, Cruz conversava e ajudava a acalmá-la. “Um dia, meu marido chegou e ele estava fazendo massagem na minha barriga. Ele foi essencial, deu paz.”

Amanda Oliveira Santos da Silva, 17, conheceu o obstetriz na noite de 13 de junho, quando ela chegou ao Hospital Ipiranga com fortes contrações. Após os primeiros exames, a estudante decidiu fazer seu trabalho de parto na banheira e, à 1h39 do dia 14, Isabelly chegou ao mundo pelas mãos do parteiro.

Amanda foi acompanhada por um parteiro durante seu trabalho de parto de Isabelly  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Amanda foi acompanhada por um parteiro durante seu trabalho de parto de Isabelly
Imagem: Arquivo pessoal

“Estava com muita dor e ele conversava comigo e com minha mãe tentando nos tranquilizar. Ele é muito atencioso”

Universo feminino

Filho de um engenheiro e de uma psicóloga, Cruz queria desde criança ser “médico de mulher”. Tentou ingressar na medicina, mas não foi aprovado. Já aluno de obstetrícia, continuou prestando vestibular e passou na UFC (Universidade Federal do Ceará), mas decidiu permanecer na carreira de parteiro e não se arrepende.

“O curso de obstetrícia favorece o pensamento integral, a visão da mulher como um todo, na família, na sociedade, e era essa atenção que eu queria dar desde pequeno”, justifica.

Único rapaz da turma que se formou em 2013, ele diz que aprendeu a lidar com a desconfiança que as mulheres têm de serem atendidas por homens.

“As mulheres, em um primeiro momento, veem com outros olhos. ‘Um homem vai me ver pelada, vai encostar em mim’. Os maridos também, dependendo do caso, não se sentem muito à vontade, então desde a faculdade eu aprendi a contornar isso. E contornar isso é mostrar respeito”, afirma. 

Integrar o pai é outro passo importante nesse processo, segundo o obstetriz. “A sociedade em que estamos incluídos, mais machista, tira esse momento do pai. O pai tem direito de se emocionar, é o nascimento do filho dele também”, defende.

Deise Pim fez o parto domiciliar com a ajuda de uma equipe com parteiro - Arquivo pessoal/Valéria Sbrissa - Arquivo pessoal/Valéria Sbrissa
Deise Pim fez o parto domiciliar com a ajuda de uma equipe com parteiro
Imagem: Arquivo pessoal/Valéria Sbrissa

O preconceito não parte apenas dos pacientes. “Colegas da saúde falam que não deveria ter homem nesse universo, que é um universo feminino. É engraçado isso porque médico não tem sexo, médico é médico. Existe uma quantidade razoável de obstetras homens, mas o número de parteiros é pequeno, e acho que ele é reduzido pelo cuidado assistencial, que a sociedade vê como um cuidado feminino, estar ao lado, ter paciência, auxiliar”, diz. 

Em 2016, o parteiro trabalhou em um campo de refugiados no Sudão do Sul atendido pela organização Médicos Sem Fronteiras. Nesse período, estima que recepcionou mais de 400 bebês e, como forma de homenagem, dois deles foram batizados com seu nome.

“Em alguns países, eu não poderia atender por ser homem. Por exemplo, onde minha noiva estava, no Afeganistão, eu não poderia ir de forma alguma, mas onde eu estava não era tão radical e houve apenas uma mulher que não queria que eu atendesse. Naquele momento, eu era a única pessoa capacitada, então tive que conversar, pedir para alguém traduzir que não teria como chamar outra pessoa. Ela aceitou e eu recebi a criança.”

Dificuldade até para registro

Hoje profissionais como Cruz podem atuar em UBS (Unidades Básicas de Saúde), hospitais e casas de parto, mas há alguns anos não era assim. Quando a primeira turma se formou, em 2008, o Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo) não reconhecia a profissão.

"A obstetrícia foi uma das primeiras carreiras na área da saúde a serem implantadas no Brasil, mas na década de 70 o país começou a seguir mais fortemente o modelo norte-americano, que não tinha tanto a presença de obstetrizes, mas sim do médico obstetra e da enfermeira obstetra, e o curso foi extinto. Quando ele foi reaberto, já existia a legislação que colocava o profissional dentro do Conselho de Enfermagem, mas eles não queriam nos registrar e recorremos ao Judiciário. Por conta dessas dificuldades, muitos dos meus colegas de turma acabaram não atuando na área”, conta Marcel Reis Queiroz, 30, um dos quatro homens da sala que concluíram o curso.

Professor temporário na USP, Queiroz ressalta o fato de, no Brasil, as cesarianas representarem mais da metade dos partos – a taxa é de 55,5%, segundo levantamento divulgado em março pelo Ministério da Saúde – e vê nessa proporção reflexos da questão de gênero que permeia a violência obstétrica.

“É claro que não podemos negligenciar os avanços da medicina, mas hoje a gente vive o que é descrito na literatura como o ‘paradoxo perinatal’, ou seja, em um momento em que a gente tem tanta oferta de tecnologia, os desfechos são piores. A cesariana deveria ser empregada somente em caso de necessidade e há muita técnica sendo utilizada de forma inadequada.”

Aumento do número de homens

No caso de Luiz Gustavo Sparvoli, 26, a experiência que a mãe teve em sua gestação ajudou a definir a carreira. Ela teve descolamento prematuro de placenta e insistiu para ter parto normal.

“O nascimento envolve muita emoção, é quase de outro mundo. Não dá para explicar em palavras o que é acompanhar esse momento, tem que viver”, diz o obstetriz.

Marcelo Henrique está no 1º ano do curso - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marcelo Henrique está no 1º ano do curso de obstetrícia
Imagem: Arquivo pessoal

Alunos dos primeiros anos do curso, Renan Martins, 19, e Marcelo Henrique, 20, ainda não acompanharam nenhum parto, mas já definiram que essa é a profissão que querem seguir e acreditam no crescimento da carreira, inclusive com mais homens.

“O curso tem um ideal de humanização, de empoderamento da mulher e de assistência em que não só as dimensões biológicas são levadas em conta, mas as psicológicas, sociais e espirituais também. Ele transforma você em vários aspectos, abre seus olhos sobre o sistema e sobre como tudo deveria funcionar. Falamos aqui que obstetrícia é um curso de luta”, comenta Martins.

“Um maior reconhecimento do curso faria com que não só os meninos, mas também mais meninas procurassem a formação”, opina Henrique.