Sucesso da PEC do Teto está atrelado à Reforma da Previdência, diz economista ligado ao PSDB
"O ótimo é inimigo do bom." Assim o economista Felipe Salto, especialista em contas públicas ligado ao PSDB, resume sua defesa da PEC do teto dos gastos públicos, proposta de emenda constitucional definitivamente aprovada nesta terça-feira pelo Senado.
Embora tenha feito críticas públicas ao texto aprovado, ele refuta as acusações de que o governo Michel Temer teria sido autoritário ao não aceitar que o Senado fizesse alterações na proposta - qualquer mudança remeteria a PEC novamente à Câmara, atrasando sua aprovação.
"Melhor, sim, aprovar uma medida como esta, que recoloca a questão fiscal no topo da agenda econômica, do que não avançar", ressaltou.
A emenda à Constituição, que foi aprovada definitivamente por 53 votos a 16 no Senado, agora está em vigor. Ela estabelece que os gastos do governo federal não poderão crescer acima da inflação por vinte anos.
Para críticos da mudança, esse teto vai afetar sensivelmente os gastos com saúde e educação. Para os defensores, como Salto, o limite fará com que o governo gaste melhor seus recursos, contribuindo para a recuperação da economia.
Após atuar como assessor de senadores do PSDB, entre eles o atual ministro das Relações Exteriores, José Serra, Salto acaba de ter seu nome aprovado para assumir a direção da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado - órgão similar ao existente em outros 30 países que vai contribuir com estudos e análises para promover a transparência nas contas públicas.
Confira abaixo a entrevista, concedida por email, sobre a crise fiscal e a PEC que acaba se ser aprovada.
BBC Brasil - A PEC do teto vai resolver o rombo fiscal?
Felipe Salto - O desmonte das regras fiscais, ao longo dos últimos anos, foi profundo. A prática da contabilidade criativa ocultou parte da expansão fiscal (aumento dos gastos) ocorrida no período, além de permitir a criação de um volume importante de despesas obrigatórias. Com a arrecadação do governo baqueada pela depressão econômica vivida pelo país, o deficit (rombo nas contas públicas) cresceu rapidamente.
A PEC do teto tem a vantagem de colocar no topo da agenda econômica a necessidade de equacionar o buraco das contas públicas. Ela é apenas o começo do começo das mudanças necessárias para promover um novo desenho de política econômica.
Sua aprovação, mesmo não sendo no melhor desenho possível, será positiva para ajudar a recuperar a confiança dos agentes econômicos no país. Seu sucesso estará atrelado à aprovação da Reforma da Previdência e de outras mudanças estruturais, que permitam reduzir o engessamento do orçamento.
O relator especial da ONU para extrema pobreza e direitos humanos, Philip Alston, disse que a PEC do teto vai ampliar desigualdades sociais e viola direitos humanos. O senhor concorda?
Não. A PEC apenas explicita algo que já é realidade: a inexistência de espaço para continuar a gastar no ritmo em que vínhamos gastando nos últimos governos.
É preciso ter claro: o período da bonança externa, marcado pelo crescimento extraordinário dos preços das commodities (produtos primários exportados pelo Brasil que tiveram forte valorização mundial entre 2003 e 2010), acabou. Dificilmente repetiremos a dinâmica fiscal observada naquele período sem realização de um esforço importante do lado da despesa.
O crescimento médio anual de despesa primária federal (sem contar gastos com juros da dívida) passou de 3,2% entre 1999 e 2002, para 7,4% entre 2003 e 2007 e 9,3% entre 2007 e 2010. Depois recuou para 3,8% de 2011 a 2014.
Essa aceleração, até o penúltimo quadriênio, tem a ver com o crescimento econômico elevado obtido pelo Brasil no período da bonança e a reação expansionista observada no âmbito da política fiscal. No mesmo período, as receitas cresceram, respectivamente: 5,2%; 7,1%; 9,1% e 0,6%. Essa foi a base do aumento de gastos.
Apesar do ajuste ocorrido do lado da despesa ao longo dos anos do último governo, a verdade é que as receitas foram a crescimento zero.
Hoje, o quadro é muito mais grave: os impostos e tributos estão operando com variação real muito negativa (ou seja, arrecadação do governo está em queda muito forte). E o mesmo se observa nos Estados e municípios.
A PEC ajudará a reequilibrar essa situação. Não se trata de cortar gastos, mas de explicitar à sociedade que a restrição orçamentária está realmente muito apertada.
BBC Brasil - Outra crítica do relator da ONU é que "o debate sobre a PEC 55 foi conduzido apressadamente pelo novo governo com a limitada participação dos grupos afetados". O senhor - um economista com maior interlocução junto à base do governo - chegou a defender ajustes no Senado. Mesmo assim, o governo preferiu aprovar sem qualquer ajuste. Faltou abertura ao debate?
Salto - Minha trajetória como analista e especialista em contas públicas esteve sempre pautada pelo interesse em questões técnicas e pelo máximo possível de independência.
Tanto na Consultoria Tendências, onde atuei por sete anos na área de Macroeconomia, quanto na minha atuação como assessor do senador José Serra e do senador José Aníbal, procurei sempre focar nas minhas áreas de interesse e manter o máximo de autonomia nas análises. Só se consegue credibilidade, nesta matéria, com uma conduta como essa.
Os textos que escrevi, em parceria ou não, sobre a PEC do teto, seguiram essa mesma linha. Em um deles, que circulou mais, fiz ponderações a respeito do desenho da medida. Defendi que seria possível melhorar o formato dessa nova política que está sendo proposta.
Sempre reforcei, no entanto, e repito: o bom é inimigo do ótimo. Melhor, sim, aprovar uma medida como esta, que recoloca a questão fiscal no topo da agenda econômica, do que não avançar. Mantenho minhas ponderações, e não vejo contradição nisso. O desafio fiscal é amplo e complexo. Exigirá medidas adicionais, vigilância constante e transparência.
Mas concretamente o Senado abriu mão de qualquer contribuição à matéria e mesmo economistas com trânsito na base como o senhor tiveram sugestões ignoradas. Gostaria de insistir na pergunta: houve pouca abertura ao debate? O governo não foi autoritário?
Não foi assim. O Senado participou ativamente de todo o processo e do debate, inclusive realizando uma série de audiências públicas, tendo recebido - no plenário e nas comissões - um conjunto amplo de economistas de diversos matizes. Do ponto de vista prático, alterar a proposta no Senado levaria a um atraso de todo o processo.
Mesmo mantendo as ponderações que fiz quanto ao prazo, quanto às exceções (isto é, despesas que não farão parte do teto), quanto às sanções previstas no caso de descumprimento do teto, dentre outras, entendo que o melhor é aprovar o texto como está do que retardar o processo buscando um desenho melhor e não atingir resultado algum. A política tem seus caminhos e seu tempo. Não cabe a nós essa discussão.
Uma das críticas que o senhor fez à PEC é que o teto de vinte anos proposto é longo e está desbalanceado - terá efeito nulo no início e vai gerar excesso de superavit primário (economia para pagar juros da dívida) mais à frente. O governo Temer está deixando o sacrifício para as administrações seguintes?
Não se trata disso. Fiz simulações mostrando que a PEC produz, sim, um aumento do superavit primário, mas que ele demorará um pouco mais para acontecer. Dividi essas opiniões com membros da equipe econômica e levei-a em debates na academia ao longo deste ano. Mostrei que, ao final do período de vinte anos, haverá um esforço maior do que o necessário para estabilizar a relação dívida/PIB.
Tudo isso sob certas premissas: PIB crescendo em média a 2,5% ao ano; inflação convergindo para o centro da meta (4,5% ao ano); juros reais em torno de 4,5% ao ano e estoque de dívida ao redor de 85% do PIB. Minha ponderação foi feita nessa direção e nestas bases.
Entendo que seria possível ter um melhor balanceamento das regras contidas na PEC. O ajuste precisa ser mais intenso no curto prazo. A adoção de medidas de combate ao sobrepreço existente nos contratos de compras de bens e serviços mantidos pela administração pública é um caminho. Dito de outra forma, medidas de gestão importam, sim, para o ajuste fiscal.
Estudo que produzi na FGV com o também economista Nelson Marconi mostra que uma economia de R$ 12 bilhões a R$ 14 bilhões poderia ser gerada a partir de medidas de gestão em termos anualizados. Quanto às gerações seguintes, elas certamente agradecerão se a nossa fizer a lição de casa, o que significa tornar o Estado mais musculoso e menos obeso. Transparência, repito, é fundamental neste processo.
O que explica os sucessivos rombos que começaram no governo Dilma e persistem no de Temer?
A verdade é que estamos vivendo, hoje, a ressaca de um período em que a despesa cresceu muito - mas muito mesmo - acima do que a nossa capacidade de geração de renda e riqueza podia suportar. O período de crescimento com poupança externa deu-nos a ilusão de que tínhamos passado para o clube dos ricos. Mas não foi nada além disso - ilusão.
Àquela época, contratamos despesas robustas e obrigatórias e, quando não obrigatórias, difíceis de cortar depois. Previdência, salários, transferências sociais avançaram, mas investimentos não cresceram o suficiente para alçar o Brasil a um novo patamar do ponto de vista do bem-estar social. Hoje, a maré das receitas baixou junto com a da economia e toda essa despesa contratada não é passível de ser comprimida da noite para o dia.
Os deficits continuam gigantescos por essa razão e, sobretudo, pela persistência da crise de crescimento econômico. Os erros cometidos foram muitos. O PIB tombou 3,8%, em 2015 e, em 2016, cairá outros 3,5%: o pior biênio desde 1901. Em economia, tudo tem defasagem. Nada é imediato. Não há varinha mágica para tirar o Brasil da crise.
Dito de outra maneira, não haverá recuperação sustentável das contas públicas sem uma retomada importante do crescimento econômico. É claro que uma coisa puxa a outra ou, como se diz em economês, as variáveis são endógenas, interconectadas. Por isso, há que se ter uma mescla de ações para sairmos do atoleiro. Nenhum analista sério disse que seria fácil.
A percepção que prevalece no país é que o rombo fiscal decorre de um descontrole no aumento dos gastos. Mas o problema em boa parte decorre também de perda de receita, seja por desonerações ou pela retração econômica. Não seria importante equilibrar medidas de corte de gastos e aumento de receitas?
Tradicionalmente, no pós-Constituição de 1988, o Brasil fez ajuste fiscal com aumento de receitas. Houve experiências locais exitosas do ponto de vista do controle do gasto, inclusive com medidas de gestão importantes, isto é, com efeitos fiscais robustos para o erário.
No caso do governo federal, contudo, o ajuste acabou se concentrando em aumento da carga tributária. De 22% do PIB, em 1988, avançamos para os atuais 34% do PIB. Isso sem mencionar o deficit nominal, que é o resultado fiscal não coberto por receitas, da ordem de 10% do PIB.
Não conseguimos melhorar o perfil da dívida pública, de modo que o peso dos custos de seu financiamento segue elevado e crescente. As desonerações tributárias pioraram o quadro e, sim, precisam ser revertidas.
Mas, voltando aos gastos financeiros, tema que ainda não tive oportunidade de comentar. Para que se tenha ideia do problema: hoje, há 46% da dívida pública concentrada no curtíssimo prazo, com remuneração atrelada à Selic (taxa básica de juros).
Para ter claro: a mesma meta-Selic que o Banco Central fixa para obter determinado nível de inflação determina também a remuneração de quase metade da dívida em títulos do governo quando incluído o mercado aberto (ou operações compromissadas).
Essa dimensão do lado fiscal também precisa ter transparência. Não se trata de voluntarismo, isto é, de mudar os juros como quem edita um decreto para dar nome a uma rua. Ao contrário, o esclarecimento sobre o avanço dessas despesas precisa vir à tona para que se identifiquem formas de mudança nesse peso gerado pelas políticas monetárias, creditícias e cambiais.
Em apoio ao processo de impeachment, a Fiesp promoveu uma campanha contra novos impostos: "não vamos pagar o pato". O governo Temer assumiu esse discurso e vetou qualquer aumento de imposto. Por outro lado, é notório que o sistema tributário é regressivo (pesa proporcionalmente mais sobre os mais pobres), mas nem mesmo o PT enfrentou esse tema. Qual sua opinião sobre propostas de taxar os mais ricos, por exemplo com impostos sobre dividendos, taxação de herança?
Antes de propor mudanças mais profundas no sistema tributário, é preciso compreender o que ocorre no modelo atual. Quantos regimes de desoneração ou regimes especiais foram criados? Qual o controle e o conhecimento que se tem sobre os resultados dessas políticas?
Antes de pensar em grandes mudanças, é preciso rever, item a item, o que já está em vigor em termos de incentivos e benefícios fiscais. O potencial arrecadatório é grande. O que é preciso ter em mente, de todo modo, é que sociedades desenvolvidas e complexas não tendem a ter Estado reduzido.
Ao contrário, com raras exceções, Estados de bem-estar social avançados têm carga tributária razoavelmente elevada, mas ostentam também um nível elevado de qualidade de serviços prestados à população. O desafio do país é reduzir a complexidade do sistema tributário, criar um padrão de gastos que seja compatível com as nossas condições de crescimento e que atenda aos anseios da população.
Neste tema, deve imperar a democracia e o interesse social. Nós, economistas, só temos a contribuir mostrando o que é mais eficiente, o que é mais eficaz e também o contrário.
Mas objetivamente quanto às propostas de taxar mais os mais ricos, o senhor é a favor?
Não acho essa discussão relevante. Trata-se de um espantalho. O Brasil já tem uma carga tributária elevada e tributa muito os ricos e os pobres. Qualquer discussão sobre aumento das faixas do imposto de renda ou criação de novos impostos tem de ser feita de maneira democrática, envolvendo o Congresso e a sociedade.
Não é trivial. Não há solução mágica para o problema fiscal. O grande desafio do país começa pelo lado do gasto. Só depois de fazer a lição de casa nesta matéria é que devemos pensar em aumentos de tributos.
A crise atual deixou ainda mais evidente a relevância do debate sobre as contas públicas. Qual será a atuação da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado e como poderá contribuir para avanços nessa área?
Costumo dizer que a IFI tem o objetivo central de trazer luz para as contas públicas. Afinal, como diz o ditado: à noite, todos os gatos são pardos... Nosso trabalho será o de contribuir para ampliar a transparência nas contas públicas. Isto é, produziremos análises, pareceres, notas técnicas, projeções e cálculos que ajudarão a medir os custos da ação do Estado, em todos os Poderes.
Um exemplo emblemático é o que ocorre no processo orçamentário. Sempre que o Executivo envia o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) ao Congresso, há uma discussão sobre o número estimado para as receitas. Será que está elevado ou é razoável? É compatível com as projeções para a economia, isto é, para o PIB e outros parâmetros relevantes?
Hoje não há um órgão para colocar o dedo nisso e produzir e estimular boas discussões e análises.
A IFI produzirá projeções, de maneira independente, para contribuir com esse processo. Um dos primeiros trabalhos que devemos publicar, ainda em janeiro, é uma avaliação da Reforma da Previdência (PEC 287/2016).
O acompanhamento do cumprimento e da compatibilidade da execução do orçamento com as metas fiscais estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) também será tarefa da IFI. Para isso, teremos um relatório mensal, cuja primeira edição sairá no final de janeiro, já analisando o resultado fiscal fechado de 2016.
Há cerca de trinta organizações nestes moldes instaladas ao redor do mundo. O Congressional Budget Office (CBO), nos Estados Unidos, é o mais conhecido. É possível dizer com segurança que, se existisse uma IFI, no Brasil, desde 2008 ou 2009, poderíamos ter evitado o avanço da contabilidade criativa, sobretudo das pedaladas fiscais.
O trabalho intelectual da IFI, sendo bem feito - como, acredito, será - contribuirá para evitar que novos erros de política econômica sejam cometidos.
Reforçando a independência do órgão, além do mandato dos seus diretores, ele contará com um comitê de assessoramento técnico composto por cinco membros não remunerados que deverão ter notório saber nos assuntos econômicos e fiscais.
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