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Como Paraguai e Bolívia conseguiram se transformar em países bilíngues

Marcia Carmo - De Buenos Aires para a BBC News Brasil

29/12/2018 08h47

O Paraguai e a Bolívia estabeleceram, nos últimos anos, medidas para garantir que as línguas indígenas continuem sendo bastante faladas por gerações e gerações - uma estratégia que ajuda a explicar por que, diferentemente do Brasil, dominar esses idiomas não é algo ligado a minorias nesses países.

As iniciativas, somadas à tradição e aos programas culturais nestas línguas, são refletidas nas conversas em idiomas indígenas entre amigos que viajam, por exemplo, nos transportes públicos de Buenos Aires, onde residem milhares de imigrantes dos dois países. E ainda nas repartições públicas, no comércio e nas ruas de La Paz, na Bolívia, e de Assunção, no Paraguai.

É comum observar como os paraguaios passam naturalmente do espanhol para o guarani, ou vice-versa, quando conversam entre eles. E, como contou à BBC News Brasil uma entrevistada boliviana, ser bilíngue é quase uma arma para evitar que o entorno, que só fala espanhol, entenda o que se está conversando.

Esse método, aliás, foi usado em conflitos bélicos entre países, mas, atualmente, isso nem sempre funciona. "Às vezes, estou no ônibus aqui em Buenos Aires e ouço um grupo falando quechua, pensando que ninguém está entendendo. Mas eu entendo e fico rindo sozinha por isso", disse Jeannette Nava Flores, de 42 anos, que nasceu em Sucre, na Bolívia, e é locutora da rádio Metropolitana 99.7, FM, em espanhol, e jornalista da ATP Argentina.

Idiomas originários

Na Bolívia, principalmente na região do Altiplano, no oeste do país, existem programas de rádio e de televisão, incluindo infantis, em línguas indígenas e grupos musicais que cantam os chamados idiomas originários. Alguns bolivianos trouxeram essa prática para a capital argentina.

"Quando cheguei aqui em Buenos Aires, contei que falava aimará e acabei conseguindo um programa dominical de rádio no idioma que aprendi em casa e que nunca deixei de falar", disse Freddy Flores, de 29 anos, que é de La Paz, na Bolívia, e trabalha na rádio Constelación, 98.1, FM. Ele disse que, quando pequeno, seus pais e avós liam para ele contos em aimará e não em espanhol, o que contribuiu para que aprendesse o idioma.

No seu programa, ele toca as baladas de sucesso dos grupos com canções em línguas indígenas ou folclóricas, como Los Awatiñas, K'ala Marka e Los Kjarkas.

As constituições da Bolívia e do Paraguai estabelecem que o idioma nacional não deve se limitar ao espanhol. Na Bolívia, existem 36 idiomas reconhecidos desde 2009 na Carta Magna. No Paraguai, a Constituição estabelece que os idiomas oficiais são o espanhol e o guarani - estima-se que mais de 70% da população seja bilíngue.

No Censo de 2001, em meio a uma população de 6,95 milhões de habitantes, 37,8% dos bolivianos com mais de 6 anos de idade eram bilíngue - espanhol e um idioma indígena - somando 2,62 milhões de pessoas bilíngues no país andino.

Uma década depois, no Censo de 2012, com uma população total de 7,8 milhões de habitantes no país, 38,2% com mais de 6 anos de idade se declararam bilíngues, mais de 2,98 milhões de pessoas.

Lei de línguas

Em 2010, entrou em vigor no Paraguai a chamada "lei de línguas", que determina que as línguas indígenas devem ser usadas, assim como o espanhol, na atenção ao público e no Executivo, Judiciário e Legislativo.

Ou seja, o presidente e outras autoridades do país devem estar aptos a falar nos dois idiomas na hora de se dirigir ao público, como informou a diretora de Planejamento Linguístico da Secretaria de Políticas Linguísticas, Célia Godoy, em entrevista à BBC News Brasil.

"O guarani é o idioma que identifica a cultura paraguaia. E manter o guarani vivo é um trabalho minucioso e constante", disse Godoy, que é doutora em educação com especialização em espanhol e em guarani.

O primeiro idioma que ela aprendeu foi o guarani, falado na casa dos pais. Ao se casar e ter filhos, combinou com o marido que a tradição deveria ser preservada. "Ele fala espanhol com nossos filhos, e eu só falo em guarani. Hoje, os três, que têm 8, 15 e 20 anos, são bilíngues", contou Godoy.

Além das práticas em casa e da exigência do ensino do guarani nas escolas, como determinam as normas locais, existe uma espécie de vigilância permanente para que o guarani continue sendo falado.

Em uma carta aberta dirigida ao presidente Mario Abdo Benítez, a Academia de Língua Guarani reclamou que seu discurso de posse não tenha sido feito no idioma indígena, como informou o jornal Ultima Hora, de Assunção, em agosto passado.

No texto, a instituição, criada a partir da lei de línguas, expressou "preocupação e inquietude por não ter escutado" o presidente usando a "língua ancestral" diante dos paraguaios e das autoridades estrangeiras que participaram da cerimônia de posse.

Consultada pela reportagem, a assessoria de imprensa do presidente informou que ele fala guarani. "É verdade que surgiram críticas, mas não foi uma decisão deliberada (do presidente de não discursar na língua indígena)", afirmaram. Como um gesto em favor do idioma, comentaram, o presidente determinou que fossem atualizados todos os logos das instituições públicas para espanhol e guarani.

Intimidados

Durante muito tempo, segundo especialistas e historiadores, o guarani foi mal visto pelas classes mais ricas. A atitude fazia com que os mais carentes se sentissem intimidados a falar o idioma indígena fora de casa. "A atmosfera foi mudando desde que a lei entrou em vigor", disse Godoy.

Para ela, a escrita e a gramática também cumprem papel fundamental para a preservação das línguas indígenas. Neste ano, contou, foram lançados dicionários e livros que respaldam o guarani e outros idiomas ancestrais - o Paraguai tem 19 línguas indígenas.

Foi o caso, por exemplo, do dicionário de manjui lançado neste ano no país, realizado pelo pesquisador e professor da Universidade Autónoma de Entre Ríos, na Argentina, Javier Carol, a pedido de autoridades paraguaias.

"O importante do dicionário é que significa que a língua existe para o Estado. Significa que o Estado e a sociedade não a escondem, e isso é importante para a pessoa que fala a língua", disse Carol.

Estima-se que o manjui seja falado por menos de 3 mil pessoas. Mas existem outros idiomas, como o do povo guaná, falado por apenas quatro pessoas, como contou Célia Godoy. As quatro idosas que falam o idioma passaram até por oficinas para preservar a cultura.

Em muitos casos, segundo especialistas, é natural que as crianças e adolescentes prefiram, até por integração ou às vezes por certa vergonha, programas de TV, moda e cultura em espanhol, o que dificulta a permanência do idioma indígena.

Para Eduardo Navarro, professor da Universidade de São Paulo (USP), que pesquisa culturas indígenas há três décadas, o Paraguai "tem a sorte de preservar" a língua indígena, o guarani.

"Já o Brasil perdeu a oportunidade de ser bilíngue como o Paraguai, que tem o maior bilinguismo dentro da América e conseguiu isso com muitas medidas", disse Navarro.

Ele contou, porém, que existem iniciativas "muito bonitas" no Brasil, no mundo acadêmico e de ONGs, mas muito menos no terreno oficial, na tentativa de respaldar as línguas indígenas no país.

A USP, contou, realizou publicações de gramática em nheengatu, que é da Amazônia. Cerca de 6 mil pessoas, distribuídas ao longo de 700 quilômetros, na região do rio Negro, são bilíngues.

"Mas as línguas só sobrevivem se, além de faladas, forem escritas. Elas precisam ser lidas ou suas palavras serão substituídas pelo português, como vem ocorrendo. Sabemos que proteger a língua é proteger a cultura. E as culturas não podem morrer", disse Navarro, que costuma levar seus alunos para pesquisas de campo em comunidades indígenas de São Paulo.

Na América do Sul, além do Paraguai e da Bolívia, Peru, com 44 línguas originárias, e Equador, com 14, também são países onde, dependendo do território, se pode escutar, em maior ou menor medida, línguas indígenas sendo faladas.

Segundo dados oficiais, cerca de 4 milhões de peruanos, de uma população total de 32 milhões de habitantes, falam algum idioma indígena. No Equador, por sua vez, acadêmicos alertam que algumas línguas indígenas correm o risco de desaparecer se não continuarem sendo faladas.