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Wikileaks é uma prova da importância dos jornalistas

Australiano Julian Assange, fundador do site Wikileaks, após divulgar documentos secretos do Afeganistão - EFE
Australiano Julian Assange, fundador do site Wikileaks, após divulgar documentos secretos do Afeganistão Imagem: EFE

Anne Applebaum

30/07/2010 00h01

Eu não achei que era possível, mas Julian Assange conseguiu: ao divulgar 92 mil documentos cheios de inteligência sobre o Afeganistão nos laptops de um público inocente, o fundador do WikiLeaks finalmente apresentou um argumento irrefutável em prol da imprensa tradicional. Se você tinha a impressão de que não precisávamos mais de organizações de notícias, editores ou repórteres com mais de 10 minutos de experiência, então pense de novo. A noção de que a Internet pode substituir o jornalismo tradicional acabou de ser revelada como um mito.

Para entender o que estou dizendo, tente ler isto: “Às 1850Z, TF 2-2 usando PREDATOR (UAV) PID insurgentes colocando IEDs na 41R PR 9243 0202, 2,7km NO de FOB Hutal, Kandahar. TF 2-2 usando PREDATOR travou combate 1x míssil Hellfire resultando em 1x INS KIA e 1x INS WIA. Controle ISAF #12-374”.

Você entendeu? Eu não entendi e serei a primeira a admitir. Mas agora entendo um pouco melhor, porque o “New York Times” felizmente explica em seu site que este trecho, de um dos documentos no WikiLeaks, descreve uma aeronave não-tripulada Predator disparando um míssil contra homens suspeitos de plantarem bombas de estrada.

E que tal este: “Às 1635z TF 2Fury relatou um evento Verde contra Verde em Giro DC, VB 3591 6240. Um elemento em Giro DC relatou que dois dos OPs IVO de Giro DC estavam sob ataque de SAF e DF”. Este é ainda mais difícil, mas, felizmente, o “Guardian” nos informa que é um trecho descrevendo um tiroteio entre diferentes unidades da polícia afegã.

À medida que você lê estes documentos, você começa a entender os códigos (FOB é “forward operating base”, ou base avançada de operações, BDA é “battle damage assessment”, ou levantamento de danos de combate), mas após algum tempo, até mesmo os resumos deixam de fazer sentido. Aquela operação com Predator foi crucial? Aquela batalha entre a polícia afegã foi um caso de fogo amigo comum ou refletia um conflito mais amplo? Aqui o “New York Times” e o “Guardian” podem ajudar um pouco: eles tiveram tempo para analisar os documentos, submetê-los a especialistas e realizar um pouco de comparação. Assange, apesar de sua insistência no valor dos dados brutos, sabia perfeitamente bem que o público seria incapaz de entender muitas dessas coisas e apresentou antes os documentos aos jornais.

Ainda assim, mesmo esses jornais estavam atuando com um grande obstáculo. Como a WikiLeaks lhes deu um prazo, eles não tiveram chance de realizar um trabalho jornalístico real. Caso jornalistas estivessem presentes quando ocorreu aquele tiroteio entre policiais afegãos, ou mesmo um ano depois, eles poderiam ter descoberto algo interessante –se aquilo realmente se tratava de uma disputa de clãs, por exemplo, ou de treinamento ruim– ou talvez nada. Quando um relato como esse é colocado em uma longa lista, junto a outros documentos igualmente enigmáticos, igualmente fora de contexto, é difícil saber.

Mas não havia repórteres presentes e não houve tempo para realização de jornalismo real, então o contexto mais profundo desses documentos terá que ser obtido de algum outro modo. Eventualmente, um historiador ou um bom repórter investigativo os entenderá por meio de entrevistas, memórias, outros documentos de outras fontes, perícia. Isso levará tempo, dinheiro e possivelmente o apoio da imprensa tradicional –uma revista, um jornal– ou mesmo de uma instituição de “elite”, como uma universidade.

Até lá, os documentos vazados não oferecem nada mais do que dados brutos. Eles fornecem “cor”. Eles fornecem detalhes. Eles ajudam a reforçar preconceitos existentes: eu noto que o mapa interativo do “Guardian”, de “incidentes significativos” revelados pelos documentos, mostra apenas os fracassos militares –baixas civis, acidentes– mas não tem nenhum código de cores para qualquer tipo de sucesso.

Eles dão aos jornais uma chance de fingir que obtiveram furos de reportagem. Segundo meu levantamento extremamente por cima, o “New York Times” mencionou o relacionamento entre o serviço secreto paquistanês, o ISI, e o Taleban várias dezenas de vezes na última década. (Em setembro passado, um repórter do “Times” descreveu o ISI como “benfeitor ora sim, ora não do Taleban por mais de uma década”.) E o “Times” apresentou a manchete “Paquistão Ajuda Insurgência no Afeganistão” no fim de semana, como se fosse uma novidade.

Mas sem mais jornalismo, sem mais investigação, mais trabalho, esses documentos não importam muito. Argumentar, como fez James Fallows, que são significativos porque informarão um público ignorante, é ridículo: se você não sabia até agora que o ISI ajudou a criar o Taleban, ou que a morte de civis é um problema para a OTAN, ou que as unidades das Forças Especiais estão caçando combatentes da Al Qaeda, isso significa que você não tem acompanhado a imprensa tradicional. O que significa que você realmente não quer saber.