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Brasileiros dizem à PF que foram ao Líbano para recrutamento do Hezbollah

Passagens gratuitas para viajar ao Líbano, dinheiro vivo para as despesas no país, cenas cinematográficas de transporte em veículos com vidros escuros, sempre na companhia de homens armados, e uma pergunta direta: "Tem capacidade de matar e sequestrar pessoas?"

É dessa forma que dois brasileiros descreveram à Polícia Federal como o grupo Hezbollah tentou recrutá-los para trabalhar para a organização, sob a promessa de pagamentos vultosos e o alerta de que o abandono do serviço seria punido com o assassinato.

A atuação do grupo no Brasil está sob investigação da PF na Operação Trapiche, deflagrada no fim do ano passado. Diferentemente dos EUA, que classificam o grupo libanês como terrorista, a diplomacia brasileira não usa o método de catalogar organizações como terroristas, mas apenas atos.

O Gaeco (Grupo Especializado de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público Federal de Minas Gerais já apresentou denúncia contra o sírio naturalizado brasileiro Mohamad Khir Abdulmajid, que é acusado de recrutar brasileiros para a organização terrorista e planejar a realização de atos no Brasil, e de ser um dos participantes dos atos preparatórios. A Justiça tornou-o réu no caso.

Foram obtidos elementos concretos demonstrando que integrantes de organização terrorista vinculada ao grupo libanês Hezbollah vêm promovendo o recrutamento de brasileiros para atuarem como proxies do grupo e, especialmente, para a prática de atos preparatórios de terrorismo contra a comunidade judaica no Brasil
Trecho da denúncia do Gaeco do MPF de Minas Gerais

Depoimentos colhidos no fim do ano passado destrincharam o método de recrutamento do grupo. Os brasileiros disseram que as pessoas no Líbano com as quais se relacionaram usavam a insígnia do grupo e que o nome da organização chegou a ser citado. Os nomes das testemunhas não serão divulgados, para preservar suas identidades.

Um dos brasileiros ouvidos pela PF trabalhava em um comércio em São Paulo e disse que, por meio do trabalho, conheceu um libanês, citado apenas pela alcunha de "Caipira". O brasileiro, então, foi chamado para uma conversa, na qual também estava presente outro libanês, chamado de "Liba". Eles ofereceram uma oportunidade de trabalho que seria acertada em uma viagem internacional, sem dar detalhes do serviço.

Eles não falaram qual trabalho seria feito e disseram que o declarante só saberia quando chegasse no Líbano (...) Eles falavam que uma pessoa do Líbano que se identificava como Stefano arcaria com todos os custos da viagem
Brasileiro recrutado pelo Hezbollah, em depoimento à PF

O brasileiro topou a viagem, que foi realizada em fevereiro do ano passado. Recebeu, por WhatsApp, as passagens aéreas e a hospedagem em um hotel, além de transferência de valores para sua conta bancária para custear as despesas no Líbano.

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Após chegar em Beirute, a capital do país, ele passou o primeiro dia descansando no hotel. Por WhatsApp, recebeu orientações: no dia seguinte, deveria deixar todos aparelhos eletrônicos no quarto e ficar na porta do hotel com uma sacola preta aguardando um veículo lhe buscar.

Durante três dias seguidos, ele foi levado do hotel em uma caminhonete preta por um grupo de três pessoas, todas portando armas como fuzis e pistolas, e que falavam árabe entre si. Rodava a cidade no carro, trocava de veículo novamente, rodava mais um pouco e retornava ao hotel. Não havia nenhuma conversa sobre o tema da viagem.

Até que, no quarto dia, o brasileiro foi avisado que um veículo lhe buscaria à meia noite para encontrar o chefe do grupo. Após entrar na mesma caminhonete preta, ele foi levado para o estacionamento de um supermercado, onde ingressou em um veículo da marca BMW com os vidros totalmente escuros e uma divisória entre os bancos da frente e os de trás. Neste momento, ele "temeu que seria vítima de crimes ou recrutado para organizações terroristas", conforme relatou à PF.

Ainda de acordo com o relato aos investigadores, a BMW percorreu as ruas de Beirute por dez minutos, até que entrou no subsolo de um prédio comercial, onde havia homens trajando terno e gravata, usando máscaras nos rostos e portando armas longas. Foi conduzido a um elevador que, no final, levou-o à sala onde ocorreria o encontro com o chefe do grupo, chamado de Stefano.

A conversa foi acompanhada por um tradutor. De acordo com o depoimento, Stefano perguntou ao brasileiro quanto ele ganhava em seu trabalho no Brasil e se sabia o que tinha ido fazer em Beirute. Ele respondeu que não sabia exatamente.

O chefe demonstrou irritação, fez perguntas sobre a relação dele com partidos políticos no Brasil e, ao final da conversa, deu 500 dólares para o brasileiro gastar em Beirute. Avisou que teriam uma nova conversa no dia seguinte, sempre de acordo com o relato feito à polícia.

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"Capacidade para matar"

Após repetir todo o procedimento, o brasileiro voltou à presença do homem que dizia se chamar Stefano, que foi mais explícito nas informações.

Nessa segunda reunião, Stefano perguntou se o declarante tinha passagens policiais e se era faccionado ou ligado ao PCC; perguntou se o declarante tinha passagem por tráfico de drogas; perguntou se o declarante tinha disponibilidade para fazer viagens por outros países; pediu para o declarante não conversar mais com o Liba e nem com o Caipira; perguntou se o declarante tinha capacidade para matar pessoas; que o trabalho proposto era matar pessoas desafetos deles
Brasileiro recrutado pelo Hezbollah, em depoimento à PF

De acordo com o relato do brasileiro, o chefe disse que a missão era recrutar gente na Europa, comprar armas no Paraguai e matar alvos em diversos países da América do Sul.

Ele relatou à PF que teve outras reuniões com homem conhecido como Stefano, quando este lhe alertou que o vazamento dessas informações implicaria o seu assassinato e de sua família. Receoso de recusar o trabalho, ele disse que precisaria retornar ao Brasil para organizar sua vida e daria uma resposta sobre a proposta.

Stefano aceitou e deu 5.000 dólares em notas de cem para o declarante; que esses 5.000 eram uma pequena fração do que Stefano tinha naquele momento;
Stefano falou para fazer bom uso do dinheiro e organizar sua situação financeira e tomar a decisão

Brasileiro recrutado pelo Hezbollah, em depoimento à PF

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Ao final, o brasileiro disse que tentou cortar contato com Stefano, mas continuou sendo procurado por ele. De acordo com seu relato, ele disse ao homem do Hezbollah que havia sido procurado pela Polícia Federal e por isso não poderia sair do país, para evitar ser recrutado pelo grupo.

Um outro brasileiro, morador do interior de São Paulo que trabalhava em eventos, fez um relato semelhante à PF sobre a tentativa de recrutamento: recebeu passagens aéreas, hotel e dinheiro para ir ao Líbano. A sua viagem ocorreu em abril do ano passado. Veículos com cortina preta, homens armados e diversos passeios de carro em Beirute até chegar ao chefe da organização.

O chefe disse para o declarante que precisava de gente capaz de matar e sequestrar; então o declarante desconversou e deu a entender que não tinha capacidade de praticar aqueles atos criminosos
Segundo brasileiro recrutado pelo Hezbollah, em depoimento à PF

Os dois também contaram que foram orientados a tirar um dia para visitar os pontos turísticos de Beirute e fazer fotos nesses locais. Isso serviria de álibi para justificarem que viajaram para fazer turismo, caso fossem questionados pelas autoridades.

Ao concluir parcialmente a apuração, a PF afirma que os depoimentos dos brasileiros e as provas colhidas "confirmam o modus operandi dos recrutamentos de brasileiros para realizarem atos de Extremismo Violento Ideologicamente Motivado".

O sírio naturalizado brasileiro Mohamad Khir Abdulmajid, um dos apontados como recrutadores dos brasileiros, atualmente está foragido e não foi localizado para se manifestar. A PF continua com a investigação em andamento para identificar outros responsáveis por esse recrutamento de brasileiros para o Hezbollah.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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