Por defender as mulheres contra o Talibã, atleta é desqualificada em Paris
Os organizadores dos Jogos de Paris anunciam a desqualificação da atleta B-girl Talash, de 21 anos. Nascida em Cabul, ela fugiu depois que o Talibã tomou o poder no Afeganistão e passou a integrar a equipe de refugiados, competindo na modalidade de breaking.
Mas, na sexta-feira, antes de seu primeiro duelo contra um atleta da Holanda, ela exibiu um protesto pela liberdade das mulheres afegãs. Na faixa, lia-se "Liberte as Mulheres Afegãs".
"A atleta refugiada B-girl Talash foi desclassificada por exibir um slogan político em seu traje, violando a Regra 50 da Carta Olímpica", anunciou a associação de sua modalidade neste sábado. A regra alvo de polêmicas a cada quatro anos estabelece que "nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida em quaisquer locais, instalações ou outras áreas olímpicas".
Ela havia ficado em último lugar e não passaria para a próxima fase da competição. Ainda assim, foi eliminada por seu gesto político.
Para fugir de seu país, ela ficou um ano escondida no Paquistão, antes de chegar até a Europa. O tom de protesto da atleta não é uma novidade. Antes de iniciar a competição, ela afirmou que não havia abandonado seu país por medo do Talibã.
"Saí porque quero fazer o que puder pelas meninas do Afeganistão, por minha vida, meu futuro, por todos", disse.
Ainda em Cabul, ela era a única garota a praticar o esporte. Mas passou a ser alvo de ameaças de morte.
ONU manda carta para COI: não sejam cúmplices dos crimes do Talibã
O incidente ocorre dois dias depois que especialistas da ONU enviaram uma carta ao COI pedindo "uma ação decisiva dos órgãos esportivos nacionais e internacionais contra a proibição do Talibã de que mulheres e meninas do Afeganistão participem de todos os esportes".
"Por quase três anos, o Talibã impediu que mulheres e meninas do Afeganistão participassem de todos os esportes, uma revogação inaceitável de seus direitos, que nenhum outro país impõe", disseram os especialistas na carta.
"Essa proibição faz parte do sistema institucionalizado de discriminação e opressão de sexo e gênero do Talibã, o que pode equivaler a crimes contra a humanidade", alertaram.
Para eles, é "essencial que as inspiradoras e talentosas atletas afegãs sejam vistas no auge dos esportes em Paris, bem como em outras competições, especialmente quando estão sendo evisceradas da vida pública em seu país de origem". "Sua participação é contra a opressão sistemática do Talibã e a exclusão de mulheres e meninas", afirmaram.
Na carta, a ONU relembra ao COI a necessidade de que a entidade cumpra com seus compromissos de direitos humanos e que não seja cúmplice aos atos do Talibã.
"A terrível privação dos direitos e da dignidade das mulheres e meninas afegãs, inclusive por meio de sua exclusão do esporte no Afeganistão, é um dos principais motivos para a participação delas em Paris", destacou.
Opressão de gênero
Talash não é um caso isolado. Numa investigação concluída pela relatoria da ONU no final de junho, foi determinado que o Talibã promove crimes contra a humanidade ao implementar um "sistema institucionalizado de opressão de gênero".
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberSegundo o informe, o Talibã criou um "sistema de discriminação, segregação, desrespeito à dignidade humana e exclusão generalizado, metódico e imposto por meio de decretos, políticas e execução, sancionando graves privações de direitos fundamentais".
A "arquitetura de opressão" foi construída por meio de 52 decretos que intensificaram as restrições às mulheres e meninas afegãs. Milhares foram excluídas do sistema educacional e são as que enfrentam os riscos maiores de casamento forçado e servidão por dívida. "Dia após dia, o Afeganistão estava sendo privado de suas futuras engenheiras, jornalistas, advogadas, biólogas, políticas e poetisas", alertou o documento.
A investigação também concluiu que as "restrições sistemáticas ao direito das mulheres ao trabalho e à liberdade de locomoção haviam lhes tirado a autonomia financeira, forçando-as a depender de parentes do sexo masculino". "As famílias mergulharam ainda mais na pobreza, com mais relatos de depressão e suicídio entre mulheres e meninas", disse.
Richard Bennett, Relator Especial sobre a situação dos direitos humanos no Afeganistão, pediu num encontro no Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho que a comunidade internacional evite a normalização ou legitimação das autoridades afegãs até que a situação das mulheres seja modificada. Para ele, existe um "apartheid de gênero" hoje no país.
Nasir Ahmad Andisha, Representante Permanente do Afeganistão junto ao Escritório das Nações Unidas em Genebra, também denunciou a situação e indicou que, sob o domínio do Talibã, o país enfrenta "uma das mais sérias crises institucionalizadas de direitos humanos do mundo".
O exame sobre o país ainda trouxe a voz de mulheres. Laila, uma jovem do interior do Afeganistão, disse que não pôde continuar seus estudos depois de ter sido banida das universidades. Benafsha Yaqoobi, ativista dos direitos das mulheres, confirmou que um sistema de "apartheid de gênero" vem se desenvolvendo.
"A institucionalização do Talibã de seu sistema de opressão de mulheres e meninas e os danos que ele continua a enraizar devem chocar a consciência da humanidade", disse Bennett. "Esse ataque contra as mulheres não está apenas em andamento, está se intensificando", completou.
O relator ainda sugeriu que o mundo use "todas as ferramentas" para desafiar e desmantelar o sistema institucionalizado de opressão de gênero do Talibã e para responsabilizar os culpados. Para ele, isso deve incluir até mesmo uma ação no Tribunal Penal Internacional, em Haia.
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