Divã da esquerda convida Lula a revisitar o passado de operário
A direita acha que dispõe de um excesso de cabeças. A submissão a Bolsonaro mostra que tem carência de miolos. A esquerda sofre da mesma carência. Mas tem uma cabeça só, a de Lula. A lufada conservadora das urnas municipais brasileiras já havia acomodado a esquerda no divã. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos fez da autocrítica um fator de sobrevivência do grupo.
Embora se finja de morto, Lula reconhece em privado a inevitabilidade de liderar o processo. O reposicionamento do PT e da própria esquerda dependem da autoanálise do líder hegemônico. Uma regressão ao passado sindical seria um bom começo para Lula. É preciso incluir na agenda o desejo humano. Como ensinou Freud. Ou Lacan: "O inconsciente é o discurso do outro". Lula e a esquerda precisam de psicanálise.
Para que a terapia evolua, Lula tem que parar de culpar o mundo por sua própria perplexidade. Deve fazer a si mesmo e aos seus acólitos um par de perguntas vitais: "Onde temos errado no modo de ver o mundo? Como pudemos ser tão incapazes de perceber a discrepância entre os nossos objetivos e a ausência de conexão com os desejos alheios? Uma regressão ajudaria a achar as respostas.
O mergulho no passado içará das profundezas a memória de 64. Com apoio empresarial e da classe média, o golpe deu uma paulada na ilusão revolucionária da esquerda. O fascismo verde-oliva sobreviveu às passeatas pacíficas. Triturou nos porões a resistência armada. De repente, sugiu Lula no ABC. Crítico do "milagre" militar, mudou a agenda da esquerda.
De costas para estudantada bem-nascida e para a intelectualidade onírica, Lula deu aulas de pragmatismo. À sua maneira, jogou o jogo de um capitalismo que ideólogos pequeno-burgueses desprezavam. Interessava-lhe o interesse real dos trabalhadores, não a ideologia. Vislumbrou o desejo humano ao seu redor.
Era como se Lula, antevendo o futuro, introduzisse o operariado no mundo pós-liberal que já se prenunciava na década de 70. Quanto mais desprezava os pretensos operadores e pensadores de esquerda, mais era admirado por eles. Hoje, lamenta que a realidade seja tão reacionária.
Lula atraiu para a porta de fábrica as atenções do regime militar e dos cérebros da esquerda. A proeminência sindical rendeu-lhe a ascendência política. Hoje, sua ideologia é a saudade. "Ah... Como era lindo o mundo quando os sonhos do trabalhador cabiam na CLT..."
No século passado, Lula chegou a ensaiar uma parceria com Fernando Henrique Cardoso. Por mal dos pecados, dividiram-se. Um foi fundar o PT. Outro, mais tarde, o PSDB. Hoje, o ex-líder sindical pergunta aos seus botões —que não respondem, pois não falam com qualquer um— por que pregoeiros ultradireitistas do evangelho da prosperidade encantam a periferia com ilusões vendidas no templo das redes sociais. Freud diria: "Investigue seus motivos inconscientes."
No alvorecer da redemocratização, a derrota para Fernando Collor desenvolveu em Lula um complexo social. O rico derrotou o representante da maioria pobre. As duas derrotas para FHC, no primeiro turno, plantaram na alma do operário um complexo intelectual. A USP prevaleceu sobre o chão de fábrica da Volks e da GM.
Numa época em que a direita tradicional entrou em declínio, com o malufismo em São Paulo e o carlismo de ACM na Bahia, a esquerda petista recusou-se a dialogar com a centro-esquerda tucana. Lula tratou FHC como inimigo. Sonegou apoio até ao Plano Real. A USP foi como que empurrada para o colo do cangaço político.
Nos dois mandatos de FHC, partidos como o antigo DEM e PP herdeiros da Arena, consolidaram-se como legendas de adesão. Trocaram governabilidade por cargos e verbas. Farejando a fadiga de material do tucanato, Lula recuperou o pragmatismo. Vestiu Armani. Suavizou o discurso numa Carta aos Brasileiros. Ganhou a classe média.
Nos dois primeiros mandatos de Lula, o matrimônio do governo com o centrão evoluiu para o patrimônio. Deu em mensalão, em petrolão e no impeachment de Dilma Rousseff. Deu também em Bolsonaro e no orçamento secreto, que manteve o grotesco no Planalto por quatro anos.
Em três décadas, "governabilidade" virou um outro nome para corrupção. A política brasileira vive o seu eterno terror pendular. O roteiro é invariável: os presidentes da República entram botando banca. E vão deslizando docemente para a grande vala comum do centrão.
Deve-se o retorno de Lula ao Planalto à formação de uma frente ampla em defesa da democracia e à sobriedade da maioria do eleitorado. No palanque, Lula prometeu governar para todos. Em outubro de 2022, num ato no Teatro da PUC-SP, o Tuca, declarou que, se eleito, faria um governo "para além do PT". A plateia incluía personagens como os economistas Persio Arida, idealizador do Plano Real, e Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda de Michel Temer.
O quebra-quebra do 8 de janeiro foi um aperitivo do que estava por vir. A eleição não dissolveu a divisão do país. Pela primeira vez na história, um presidente assumiu o Planalto com um pedaço da população pedindo intervenção militar na porta dos quarteis. A conspiração sobreviveu às urnas.
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Quero receberSubmetido à evidência de que Bolsonaro normalizara o golpismo, Lula fez dois gols. Ambos contra. Num, potencializou a polarização. Noutro, esvaziou a frente ampla. Esqueceu que a vitória de 2022 veio por pequena margem —apenas 1,8 ponto percentual. Desperciçou a possibilidade de ampliar sua base de apoio. Perdeu cedo demais as pessoas que haviam se juntado ao petismo apenas para salvar a democracia.
O Lula de 2024, estalando de superioridade moral, move-se na contramão do Lula da década de 1970 —aquele que nascera do ventre do capital, dialogando com seus vícios. Uma regressão mostraria a Lula o que deve ser feito, pois foi ele um dos inventores do diálogo possível da esquerda com seus contrários.
No momento, Lula não consegue se entender nem com o espelho. Estimula com seu silêncio a sabotagem de membros do PT e de parte da Esplanada ao ministro petista da Fazenda, Fernando Haddad. Como diminuir o déficit público sem rigor fiscal? Como atingir a beleza dos fins sem cuidar dos meios práticos para atingi-los? Essa tipo de dúvida costuma desaguar em carestia.
Se a lufada de centro-direita da eleição municipal e a vitória de Trump serviram para alguma coisa foi para mostrar à esquerda que não basta defender a democracia. É preciso dar ao regime uma noção qualquer de serventia prática, conectando-o, por exemplo, à geladeira.
No Brasil de Lula, como nos Estados Unidos de Joe Biden, a macroeconomia não vai mal. O PIB cresce acima do esperado, gerando empregos formais e melhorando a renda. Mas a inflação, sobretudo a dos alimentos, estoura o teto da meta. Faz soar o alarme da impopularidade.
Se não quiser recuar ao tempo de líder sindical, Lula pode buscar inspiração em Woody Allen: "A realidade é chata, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom filé." Nos Estados Unidos, os democratas pavimentaram a volta de Trump à Casa Branca ao permitir que proliferasse entre os americanos, sob Biden, a percepção segundo a qual queriam a manutenção do Poder, não um bom bife.
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