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Leonardo Sakamoto

Parte dos 114 mil não morreu de covid, mas da irresponsabilidade do governo

Coveiros trabalham com EPI durante sepultamento no Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo - Robson Rocha/Agência F8/Estadão Conteúdo
Coveiros trabalham com EPI durante sepultamento no Cemitério da Vila Formosa, em São Paulo Imagem: Robson Rocha/Agência F8/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

22/08/2020 19h22

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Mais duas pessoas em situação de rua morreram após São Paulo registrar a madrugada mais fria do ano neste sábado (22).

Quando o frio exterior é muito forte, o hipotálamo no nosso cérebro perde a capacidade de manter nossa temperatura - que, normalmente, permanece na casa dos 37° Celsius. As reações químicas relacionadas à manutenção da vida precisam de calor. Sem ele, músculos vão parando, a respiração e a circulação sanguínea diminuem, a sensibilidade some com o freio do sistema nervoso. A consciência vai se dissolvendo. Tudo até o coração parar de bater.

Num país em que mais de 114 mil corações pararam de bater após perder a batalha para a covid-19, o silêncio de mais dois na capital paulista pode parecer pouco.

Mas antes de dizermos que essa sensação de "pouco" é resultado de uma pandemia que anestesiou a percepção sobre o valor da vida humana, vale lembrar que, infelizmente, a morte de pobre já não incomodava desde que, ao sair, ele não fizesse barulho.

No dia 18 de julho de 2017, um homem foi encontrado morto à tarde após uma madrugada e uma manhã de frio intenso. O corpo teria permanecido um longo tempo até que alguém notasse o que havia acontecido. Ironicamente, ele estava na esquina que separa as faculdades de Medicina e de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e, mais ironicamente ainda, a poucos metros do Instituto Médico Legal e do Cemitério do Araçá. Não vivíamos uma pandemia.

São poucos de nós que interrompemos o nosso dia e perguntamos como alguém deitado na rua, no frio, está se sentindo e se precisa de algo - o universo não produziu pessoas como o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, em quantidade suficiente. Muitos morrem de frio em nossa cidade e ficam por lá - até alguém perceber que aquele pacotinho encolhido era um ser vivo.

Neste caso, a pandemia não nos anestesiou. Nós mesmos fizemos isso.

Não é que a cidade respeite tanto a individualidade de cada um a ponto de não interferir em seu espaço pessoal. Ela só enxerga a parte mais vulnerável da população quando esta agride, com sua existência, o senso estético de um conceito equivocado de cidade linda. Como só os invisíveis morrem com hipotermia, não chegam a ser um problema.

A hipotermia, contudo, é mera consequência uma vez que, no frio, não se morre de frio, mas de falta de políticas públicas. Ou de especulação imobiliária.

Isso sim tem um laço com a pandemia. Há mais de 114 mil mortes registradas por covid, mas nem todas as mortes foram causadas por covid. Muitas pessoas ainda estariam vivas se o governo federal e o presidente da República não tivessem se omitido e, ao invés disso, articulado uma resposta nacional à doença.

Jair Bolsonaro preferiu ignorar, depois menosprezar, então fugir, daí terceirizar a culpa e, agora, entrou na fase de mentir descaradamente, vendendo uma versão paralela da realidade para ser consumida pelos desinformados. Chegou ao ponto de organizar um evento chamado "Encontro Brasil vencendo a covid-19" nesta segunda (24). Vencendo, com 114 mil mortes. Isso quando não mente ao dizer que o Supremo Tribunal Federal entregou a prefeitos e governadores, e não a ele, o comando da crise.

Se parte das biografias interrompidas nestes dias de frio e de covid não foram interrompidas apenas pelo frio e pela covid, mas são fruto da irresponsabilidade e incompetência de gestores escolhidos por nós, então temos também nossa parcela de cumplicidade nisso.

Por isso, mortos precisam ser invisíveis. Para que eles não voltem para nos assombrar.