Derrota de Trump leva Bolsonaro a perder seu amigo imaginário
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Jair Bolsonaro apostou no cavalo perdedor. Depois, passou a apoiar o jóquei que chegou em segundo e esperneia, sem provas, que o vencedor dopou o cavalo, sabotou a pista, subornou os juízes e corrompeu o público. O pior de tudo é que o presidente brasileiro fez a aposta com o nosso dinheiro.
A outra metáfora possível seria o sujeito que vai com a vaca da família na feira a fim de vendê-la e comprar comida e volta com meia dúzia de feijões com a promessa de que são mágicos. Depois descobre que o vendedor foi levado pela Polícia Civil por estelionato, mas fica ajoelhado na sua horta, esperando a mágica acontecer.
Aliados de Donald Trump, como os primeiros-ministros de Israel, Benjamin Netanyahu, e da Hungria, Viktor Orbán, já felicitaram o democrata. Bolsonaro segue em silêncio, sem reconhecer a vitória de Joe Biden.
Apesar de todo o amor que sente pelo futuro ex-presidente norte-americano, a estratégia do brasileiro é manter-se firme, mas só até onde for possível.
Entrega, assim, o que deseja o bolsonarismo-raiz, grupo que representa de 12% a 16% da população e tem garantido apoio incondicional a Bolsonaro. Parte dele enxerga em Trump uma espécie de semideus na luta contra a conspiração de bilionários pedófilos, intelectuais globalistas, Illuminati e cavaleiros templários.
Mas também tenta ocupar o espaço deixado pelo republicano nas redes de apoio dos movimentos internacionais da extrema direita. E seus ricos patrocinadores.
E o que Bolsonaro apostou durante a campanha norte-americana? Nossa dignidade, por exemplo.
Só para dar exemplos dos últimos meses. Em um encontro com Ernesto Araújo, em 18 de setembro, em Boa Vista (RR), o secretário de Estado Mike Pompeo usou o território brasileiro para provocar o governo da Venezuela - o que levou a oposição no Senado Federal a convocar o chanceler por ajudar a criar um factoide a fim de ser usado na campanha de Trump.
Em meio à reta final da campanha eleitoral, quando Trump precisou reforçar que contava com aliados na disputa contra o gigante asiático, Bolsonaro deu sinais de que pretendia excluir ou limitar a participação da chinesa Huawei na escolha do sistema de 5G. Sem contar os ataques à China por conta do coronavírus, ecoando o republicano.
A fim de ajudar Trump, que buscava votos nos estados produtores de milho, matéria-prima do etanol por lá, Bolsonaro dificultou a vidas dos produtores brasileiros de etanol, que estavam com estoques para gastar devido à redução do consumo na pandemia. Renovou a cota de etanol dos EUA que pode entrar aqui sem pagar imposto de importação - 62,5 milhões de litros/mês. Acima disso, o valor é a tarifa comum do Mercosul, 20%. A cota havia expirado em agosto.
Não só. Os Estados Unidos reduziram a cota de aço semiacabado que o Brasil pode vender a eles sem tarifas - o total caiu de 350 mil para 60 mil toneladas para o quatro trimestre do ano. O motivo também foi pressão da indústria dos EUA sobre o candidato à reeleição por causa da queda de demanda devido à pandemia.
Durante a campanha, Trump - que visitou vários países, menos o vassalo Brasil - chegou a usar diversas vezes o governo Bolsonaro como exemplo negativo no combate à covid-19, dizendo que os EUA poderiam estar mal, como nós, caso ele não tivesse agido corretamente. Além de ceder na economia e na geopolítica, ainda virou o paga-lanche.
É hora de cobrar Bolsonaro pela aposta que fez, indo contra o que um patrimônio de um século de diplomacia brasileira independente não o autorizava a fazer. Dobrar a pressão para que ele reverta sua política de terra-arrasada na Amazônia, lembrando que não precisa ser pelo meio ambiente, pelos povos que lá vivem ou pelo futuro da humanidade, mas pelo comércio mesmo - que deve sofrer impacto com a chegada de Joe Biden. E exigir que pare de ter amigos imaginários.