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Leonardo Sakamoto

Até posse de Biden, Trump ainda pode tumultuar muito os Estados Unidos

Presidente dos EUA, Donald Trump - JONATHAN ERNST
Presidente dos EUA, Donald Trump Imagem: JONATHAN ERNST

Colunista do UOL

07/11/2020 18h14

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Donald Trump deve entregar o poder a Joe Biden no dia 20 de janeiro de 2021. O que não significa que, até lá, o presidente dos Estados Unidos não poderá fazer estragos a seu país e ao mundo.

É chamado de "lame duck" (pato manco, em inglês) o político cujo sucessor já foi eleito e deixará o cargo em breve. Nesse período, costuma ter menos poder e influência, mas ao mesmo tempo está livre para tomar algumas decisões mais polêmicas, sem se preocupar com as consequências.

Nos EUA, um presidente "pato manco" pode emitir ordens executivas (decretos presidenciais), conceder indultos, converter penas de aliados, entre outras ações. Isso pode ser revertido na Justiça, mas vale lembrar que Trump indicou mais de 200 juízes federais em pouco menos de quatro anos de mandato - Barack Obama indicou quase 300 em oito. E indicou três dos seis juízes da Suprema Corte, que tem seis conservadores e três progressistas entre seus membros.

Há pouca dúvida de que usará esses instrumentos, seja para atacar adversários, seja para beneficiar seus aliados, sua família e a si mesmo - residem sobre eles denúncias que vão de traição à sonegação fiscal.

Sim, o próprio Trump já defendeu o direito de perdoar a si mesmo, apesar de muitos juristas serem contra. Se tentar o autoperdão, pode gerar protestos pelo país. Contra e a favor. O que talvez seja o que queira.

Governando por decreto, mesmo que a maior parte deles seja cassado depois, pode criar uma boa bagunça em áreas que afetam direitos de minorias, passando por imigração até o comércio.

Permitir o aumento de mortos na segunda onda da pandemia

Alternando entre o negacionismo, a irresponsabilidade e a insuficiência de ações concretas, Trump é apontado como um dos motivos que levou os Estados Unidos a figurarem entre os campeões mundiais em mortes pela covid-19, com 236,5 mil óbitos até hoje.

Nas próximas semanas, ele pode decidir por não tomar as medidas necessárias para reduzir o impacto da segunda onda de contaminação, que já registrou quase 133 mil novos casos e 1.223 mortes apenas nesta sexta (6). O que trará, além da perda de vidas, mais impacto à economia para ser resolvido por seu sucessor.

Algo que ele ameaçou fazer na campanha - e pode vir a cumprir - é demitir Anthony Fauci, um dos infectologistas mais respeitados do país. Funcionário público, ele vem batendo de frente com a inação e as declarações de Trump desde o início da pandemia. Como é de carreira e não um nomeado político, está protegido por leis e só poderia ser demitido mediante falta grave - o que é difícil comprovar.

Mas há um caminho para isso, que também poderia causar problemas para milhões de outros funcionários públicos a partir do início de janeiro: uma ordem executiva, assinada por Trump recentemente, que cria uma nova categoria de funcionários federais que poderiam ser demitidos sem justa causa e sem as proteções tradicionais. Um sonho para o ministro da Economia de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes.

Ela abre caminho para dispensar funcionários públicos de carreira críticos a políticas do presidente, como o combate à covid ou a defesa dos direitos humanos, e o preenchimento de vagas com assessores leais.

Ataque a adversários políticos usando a máquina pública

Há pautas importantes no Congresso, como o novo pacote trilionário para ajuda econômica para aliviar o impacto da pandemia. Trump pode atrapalhar o seu sucessor, por exemplo, se aprovar algo bem maior do que o governo pode suportar ou menor do que é necessário para garantir dignidade aos trabalhadores e a retomada da produção.

Outro receio é que ele use esse período para jogar a máquina pública contra inimigos políticos, repassando informações sigilosas sobre a vida pessoal deles para seus aliados na sociedade civil.

Não é paranoia. Para uma parte da extrema direita norte-americana, Trump é uma espécie de salvador lutando contra uma conspiração de bilionários e intelectuais globalistas pedófilos - sim, é isso mesmo que você leu. Bem alimentados, esse pessoal pode ficar anos atacando a partir de informações descontextualizadas e deturpadas, desacreditando adversários de seu líder.

Dificultar a cooperação para a transição pacífica de governo

O GSA (Administração de Serviços Gerais), do governo dos EUA, tem a responsabilidade de garantir a transição de uma gestão para outra, fornecendo recursos para tanto.

Como não há um Tribunal Superior Eleitoral que decrete um vencedor, o país sempre contou com os veículos de comunicação para anunciar quem reuniu um mínimo de 270 de 538 delegados no colégio eleitoral. Quando a chefia do GSA considera que isso aconteceu, a transição começa.

Contudo, não significa que o presidente da República e seu partido político, ao não reconhecer a derrota, não pode pressionar a agência para que não comece o processo - como já ocorreu antes. Já há acordos fechados com a equipe de Biden, como o fornecimento de um escritório para se preparar para a transição, mas isso foi antes de Trump acusar, sem provas, a votação de fraudulenta.

Tudo isso que foi trazido aqui é uma mostra de como o presidente pode atrapalhar através de ações do Poder Executivo. Mas o pior talvez seja o seu próprio comportamento.

O pior dos próximos dois meses: os ataques às instituições e o risco de violência

Ao não reconhecer a vitória de seu oponente, ao afirmar que as eleições foram fraudadas, ao chamar cidades que deram voto a Biden de "corruptas", ao se autoproclamar vencedor, ao desacreditar o sistema eleitoral, e ao prometer uma guerra nos tribunais, Donald Trump fomenta a ira de seus apoiadores mais radicais, que estão indo às ruas, alguns dos quais armados - como adiantou esta coluna na última quarta (4).

Parte deles é formado por grupos de supremacistas brancos e justiceiros milicianos, que já se envolveram em conflitos contra manifestantes que pediam o fim do racismo e da violência policial.

Ou seja, não se sabe o quanto de violência institucional e física Trump pode desencadear até o dia 20 de janeiro, em seu período de "pato manco".

Não se sabe nem se ele participará do ritual de passagem do cargo, o que representaria um recado importante para a redução das animosidades.

A posse, contudo, ocorrerá, quer ele goste ou não, uma vez que nada indica que as denúncias de fraudes são baeadas em fatos reais e que as instituições deixaram de funcionar. E como afirmou Joe Biden, o Estado é capaz de remover um inquilino irregular da Casa Branca.

O problema é que o inquilino tem 88,7 milhões de seguidores, apenas no Twitter, com larga influência sobre grandes setores da sociedade norte-americana. Quem crê que a derrota em 2020 é a morte de Trump é porque não consegue enxergar além de sua bolha para ver um país cindido praticamente ao meio - 74,5 milhões para Biden, 70,4 milhões para Trump no voto popular.

Assim que deixar o cargo, o atual presidente terá que responder na Justiça. Ele mesmo disse que poderia ter que sair dos Estados Unidos se perdesse as eleições. Se sair, contudo, sua influência fica.

E vale lembrar que a 22ª emenda da Constituição dos EUA garante que qualquer pessoa possa ser eleita até duas vezes para o cargo de presidente. Ele já foi uma, em 2016, e pode tentar voltar em 2024.

O que fizer nos próximos dois meses pode ajudar a enterrar ou manter acesas suas chances para isso.