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Mauricio Stycer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Jornalismo deve causar náuseas nos indiferentes, diz repórter do Fantástico

O repórter Marcelo Canellas entrevista uma mulher endividada em reportagem no "Fantástico" - Reprodução/TV Globo
O repórter Marcelo Canellas entrevista uma mulher endividada em reportagem no "Fantástico" Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

26/01/2023 07h00

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Sempre em busca do novo, o jornalismo não tem o hábito de olhar para trás. É um pecado comum, cometido indiscriminadamente por profissionais de todas as mídias. É raro, muito raro, um jornalista se preocupar em revisitar uma situação ou um personagem que foi tema de reportagem anos atrás.

No "Fantástico" deste domingo o repórter Marcelo Canellas fugiu à regra. Em parceria com o cinegrafista Lúcio Alves, ele retornou a alguns lugares que visitou em 2001 ao fazer uma série de reportagens sobre a fome no Brasil. Dados estatísticos justificaram a volta ao passado: "O que houve com o país que já tinha saído do mapa da fome?", perguntou.

Os números mostram que a redução do número de brasileiros em situação de "insegurança alimentar" caiu entre 2004 e 2013, e voltou a subir desde então, alcançando o seu mais alto índice em 2022 - 33 milhões de brasileiros vivem em situação grave, sem comida assegurada.

Em Mesquita, na Baixada Fluminense, entrevistou Uderlaine dos Santos, que já perdeu dois filhos. "Dedê ainda tem seis crianças em casa e uma geladeira quase vazia. Seis bocas para dar de comer", disse.

Desolado com a miséria em um povoado que revisitou 22 anos depois no Vale do Jequitinhonha (MG), observou: "Parece o dia seguinte. Como se 2023 não conseguisse se livrar desse passado sofrido".

Ao longo de 18 minutos, a reportagem de Canellas combinou informação e emoção em doses certas. Dolorosa de assistir, mas terrivelmente real.

Nas redes sociais, Canellas contou que antes mesmo da exibição da reportagem, assim que a Globo começou a exibir chamadas sobre o Fantástico, ele foi alvo de ofensas de espectadores. Era gente que queria saber: Para que filmar a pobreza? Por que em vez de mostrar não entregaram cestas básicas? Por que expor tanta tristeza em vez de ajudar? "A todos expliquei os porquês de mostrar: porque é inaceitável e porque é injusto", escreveu o repórter.

Neste mesmo texto, justificando a sua volta ao passado para falar da fome, Canellas diz: "Eis a missão mais urgente do jornalismo num país injusto como o Brasil: incomodar os omissos, causar náuseas nos indiferentes, perturbar os negacionistas escancarando o que eles gostariam de esconder".

Tomo a liberdade de reproduzir abaixo a íntegra do texto de Canellas, publicado no Instagram. É uma aula sobre o papel do jornalismo e do repórter num país tão desigual como o Brasil:

Uma grande história sempre se impõe. A potência do jornalismo está em sua insubmissão. E por ser avessa a teses a priori, por refutar ideias pré-concebidas, por não aceitar encilhamento, por ancorar-se na força indomável da vida, a reportagem de prospecção causa tanto desconforto. Eis a missão mais urgente do jornalismo num país injusto como o Brasil: incomodar os omissos, causar náuseas nos indiferentes, perturbar os negacionistas escancarando o que eles gostariam de esconder.

Antes mesmo da reportagem especial desta noite ir ao ar no Fantástico, assim que as chamadas começaram a ser veiculadas durante a semana, minha caixa postal ficou abarrotada de xingamentos que terminavam com perguntas acusatórias. Para que filmar a pobreza? Por que em vez de mostrar não entregaram cestas básicas? Por que expor tanta tristeza em vez de ajudar? A todos expliquei os porquês de mostrar: porque é inaceitável e porque é injusto.

E aos que julgam os outros à luz de suas próprias debilidades morais, esclareço: eu e meu parceiro de ofício e utopias, Lúcio Alves, não acreditamos na assepsia emocional do jornalista diante do fato. Nos comovemos e, tanto hoje como há 20 anos, fomos deixando uma conta de luz paga aqui, uma cesta básica acolá, apoio frustrante de quem sabe que um ajutório fugaz não é solução para nada.

Somente uma política de Estado consistente, estruturante e duradoura será capaz de enfrentar os efeitos da desigualdade perversa que nos envergonha. A luta contra a fome é também uma batalha retórica contra a sua negação. E por vezes, tristemente, quem nega o faz por sentir-se humilhado. Por esses, tenho compaixão. Aos cínicos, tenho más notícias: o jornalismo continuará botando o dedo na ferida até que o poder cicatrizante da justiça social nos cure dessa chaga.

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