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Observatório das Eleições

Governança eleitoral: nosso sistema é melhor do que o dos EUA?

05/11/2020 04h00

Eneida Desiree Salgado*

Eleições presidenciais nos Estados Unidos: votos pelo correio, cada Estado com diferentes requisitos, múltiplas autoridades eleitorais, dúvidas em relação ao cômputo de todos os votos, apreensão em face da autoproclamada vitória do candidato à reeleição e lá vem mais um elemento da morte das democracias sendo largamente preenchido.

Em ocasiões como essa, não é raro encontrarmos manifestações celebratórias à nossa Justiça Eleitoral e sua capacidade de declarar a chapa vitoriosa na mesma noite das eleições mesmo em face de um eleitorado de quase 148 milhões de pessoas e das dimensões continentais do país.

No entanto, há mais coisas entre o céu e a terra, ou entre o sistema político estadunidense e o brasileiro, do que coloca na mesa essa categoria de discussão. As eleições parlamentares federais ocorridas na mesma data em todos os 50 Estados não trazem os mesmos problemas - trazem outro, é fato, relacionado com o desenho dos distritos.

Parece ser possível, assim, em relação à eleição presidencial, afirmar que a questão do desenho do direito fundamental ao voto (lá às vezes considerado um privilege, uma prerrogativa), as incertezas quanto ao voto pelo correio - até quando serão contados e seus critérios de validade - e o sistema de eleição majoritária e por colégio eleitoral são pontos mais relevantes, ao meu ver, para a análise do modelo estadunidense.

Nossa pretensa federação, com competências legislativas fortemente concentradas na União, com um único Código Eleitoral (aquele, elaborado no ano seguinte ao golpe civil-militar), uma Lei das Eleições para todo o país e a escolha constitucional pelo voto direto para todos os cargos eletivos que garante que todos os votos serão considerados (e não apenas aqueles que fizerem maioria em cada estado membro) evita grande parte dos problemas apresentados lá. Não impede, no entanto, que quem perca a eleição negue validade ao seu resultado, como vimos em 2014.

A autoridade eleitoral brasileira tem algumas vantagens. Sua centralização absoluta, ao arrepio do princípio federativo, assegura em boa medida que toda a cidadania brasileira tenha garantidas as múltiplas funções do direito ao sufrágio de igual maneira. É fato que vez ou outra um juiz eleitoral inventa de restringir ainda mais a propaganda eleitoral ou invalida o resultado das urnas com poucos elementos comprobatórios. Ocorre também de algum membro do ministério público eleitoral resolver ajustar condutas segundo a sua visão perfeccionista da legislação eleitoral. Mas a constitucionalização do sistema eleitoral e da determinação de quem pode votar evita a maioria dos problemas.

A existência de um corpo funcional selecionado por concurso público, com estabilidade e conhecimento técnico é, sem sombra de dúvida, seu grande trunfo e o responsável por uma administração eleitoral notavelmente competente. O alistamento eleitoral, a organização das eleições, o treinamento das autoridades de mesa, a preparação das urnas, a proclamação dos resultados são exemplos para o mundo. Os elogios, no entanto, não se estendem à atuação jurisdicional da (mesma) autoridade eleitoral. Muito menos à sua atuação normativa, que sequer tem respaldo constitucional.

A questão central, no entanto, é a concentração de funções em um mesmo órgão. A governança eleitoral é formada por três atividades - edição das regras eleitorais, administração das eleições e jurisdição eleitoral. Em um sistema democrático bem ordenado, a elaboração da legislação eleitoral ficaria reservada ao Parlamento (como determina a Constituição de 1988), com a possibilidade de controle da adequação constitucional das leis pelo Poder Judiciário. A administração das eleições seria feita por um órgão autônomo. E a jurisdição eleitoral pelo Poder Judiciário.

No Brasil, as resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) restringem direitos, criam obrigações e alteram o texto constitucional (como aconteceu com a fidelidade partidária e a perda de mandato parlamentar). O TSE determina a maneira como se darão as eleições (impondo ou suspendendo a biometria, determinando o modelo da urna eletrônica e por aí vai). E os juízos e tribunais eleitorais processam e julgam os feitos eleitorais, desde representações contra a propaganda eleitoral até crimes eleitorais, além das ações contra suas decisões administrativas.

Como se não bastasse, as decisões do TSE podem ser revistas apenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). E três ministros do TSE são ministros do STF, o que assegura uma certa blindagem à autoridade eleitoral até mesmo no controle de constitucionalidade.

A democracia estadunidense poderia se aprimorar muito com o nosso modelo de administração eleitoral. Uma autoridade eleitoral plenipotenciária e com decisões praticamente incontrastáveis, no entanto, não passa sequer no teste menos ambicioso de democracia para exportação.

*Eneida Desiree Salgado é professora de Direito Constitucional e de Direito Eleitoral na Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora líder no NINC - Núcleo de Investigações Constitucionais da UFPR.

Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br