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Observatório das Eleições

Campanhas de desinformação mobilizam conservadores contra líderes em votos

Panfleto espalhado pelo Rio de Janeiro com fake news - Reprodução
Panfleto espalhado pelo Rio de Janeiro com fake news Imagem: Reprodução

26/11/2020 11h28

Helena Martins e Luciana Santana *

A poucos dias do segundo turno das eleições, o pleito parece ser atravessado por estratégias danosas ao debate democrático, com grupos valendo-se de disseminação de desinformação contra candidaturas que lideram pesquisas, como está claro nos casos de Recife, Belém, Fortaleza e Rio de Janeiro.

No Recife, pesquisa Ibope divulgada nesta quarta-feira (25) apontou liderança de João Campos (PSB), com 43%, ao passo que Marília Arraes (PT) soma 41%. A mudança no posicionamento dos candidatos pode ter como um dos motivos a campanha de desinformação em curso contra Marília, que se dá de forma explícita e implícita. Circula no Recife panfleto apócrifo com o título "Cristão de verdade não vota em Marília Arraes". Nele, uma foto da candidata e, ao redor dela, balões com aquilo que a autoria não identificada quer relacionar com ela: defesa do aborto, legalização das drogas, ideologia de gênero. Há uma citação atribuída a ela na qual se posicionaria contra o costume de ler a Bíblia e falar em nome de Deus, cujo contexto não é explicitado. A questão foi parar no programa eleitoral de João Campos na TV, que também usou o argumento de que a petista era contra a Bíblia.

A defesa de Marília argumentou que a frase foi proferida durante discurso na Câmara Municipal, em que defendia a laicidade do Estado no âmbito das instituições públicas. A Justiça Eleitoral determinou a retirada do ar da propaganda, pois avaliou que falas foram tiradas de contexto e que tentam "confundir o eleitorado". Além da referência à Bíblia, Campos dizia em sua propaganda que "a candidata Marília assinou documento para acabar com o Prouni Recife", posicionamento que também foi retirado de contexto, de acordo com a decisão judicial.

Ainda que não seja possível comparar pesquisas de intenções de votos entre diferentes institutos, pois cada um segue metodologia própria, é útil ter em vista que, na última pesquisa Datafolha, realizada nos dias 18 e 19, Marília aparecia com 41% e João com 34%. 21% dos entrevistados mencionaram que votarão nulo ou branco e apenas 3% disseram-se indecisos. Ao serem questionados se a intenção de voto mencionada ainda pode mudar, 12% afirmaram que sim. Ou seja, embora a pesquisa tenha apontado vantagem da petista, muitos votos não estão consolidados. A forma como o eleitor recebe a "informação" nos panfletos pode comprometer a credibilidade dos candidatos - e provavelmente este efeito já está acontecendo, dado o resultado do Ibope do dia 25, em que João ultrapassou Marília.

Ainda naquela pesquisa Datafolha, dentre os entrevistados que se declararam evangélicos, 33% mencionaram ter preferência por Marília e 38% por João Campos. Entre os católicos, 44% preferiam Marília e 35% por Campos. Aqui já era possível verificar uma margem considerável de diferença que deve ter sido visualizada como espaço para crescimento para o candidato do PSB, que passou a buscar dar destaque a temas que mobilizam eleitores evangélicos. Demonstrando preocupação com o impacto da questão junto a este público, Marília, além de utilizar suas redes sociais, participou de um encontro com lideranças religiosas no domingo.

Outro tema que mobiliza bastante o eleitorado também tem sido levantado contra Marília: a corrupção. Reportagem da revista Veja destacou gravação de Túlio Gadelha (PDT-PE) que reforçaria suspeita de cobrança de 'rachadinha' pela candidata. O deputado divulgou nota rotulando a questão como "fake news" e detalhando que Marília já foi absolvida de acusações do tipo e que ação contra ela sobre possível 'rachadinha' está arquivado desde 2019. Mencionou ainda que o áudio está descontextualizado e que solicitou perícia para comprovar manipulação. O estrago, contudo, já está feito, como comprova a circulação, por meio do WhatsApp, de uma música irônica sobre a questão que trata a candidata como "Marília rachadinha", adjetivo que também tem conotação sexual.

Em disputa acirrada, apologia conservadora à família é arma em Belém

Em Belém, a situação também é delicada. O candidato Edmilson (PSOL), que já foi prefeito por duas vezes, lidera as pesquisas de intenção de voto desde o primeiro turno, e chegou ao segundo turno com 34,2% dos votos válidos. Seu adversário é o Delegado Eguchi (Patriota), que obteve 23,06% dos votos e ultrapassou candidatos tradicionais na capital.

A pesquisa Ibope divulgada no último dia 20 apresenta empate técnico entre eles. Edmilson tem 45% e Eguchi 43%. Diante de um cenário indefinido e muito acirrado, campanhas de desinformação têm dominado o cenário.

Como verificado em Recife, São Paulo ou em outras capitais com candidaturas mais à esquerda, Edmilson tem sido alvo de ataques pelas redes sociais. Uma das notícias falsas que circula diz que ele irá construir banheiros de uso comum (unissex) e tornará a ideologia de gênero obrigatória nas escolas públicas e privadas, de forma que "as crianças escolherão se querem ser meninos ou meninas". As notícias parecem ser requentadas em outros municípios - em Porto Alegre, Manuela D'Ávila fez uma publicação nessa semana dizendo que não irá tornar todos os banheiros unissex e declarando que essa era mais uma desinformação circulando.

No Instagram, também é possível encontrar postagens que ligam o candidato à pedofilia, zoofilia, aborto e outros temas que variam do polêmico ao absurdo. Apesar do candidato ser um defensor da diversidade, tais postagens não são verdadeiras. Por outro lado, o lema da campanha de seu adversário é "Deus, Pátria e Família". Todo esse cenário tem esquentado nas campanhas, inclusive o debate da RBA (grupo Bandeirantes) foi marcado por acusações entre os prefeituráveis.

Evangélicos: último reduto para Wagner em Fortaleza

A desinformação pode pesar bastante em situações de disputa acirrada, como vimos nos casos já mencionados e no de Manuela D'Ávila. Mas também parece haver apelo a esse tipo de ataque diante da derrota iminente, ainda que seus resultados dificilmente levem a uma alteração significativa do quadro eleitoral.

É o caso da capital cearense, onde a última pesquisa Ibope, divulgada na segunda-feira (23), registra que José Sarto (PDT) lidera com 53% e Capitão Wagner (PROS) tem 35%. Panfletos apócrifos têm sido distribuídos em templos religiosos. Um deles traz as seguintes frases em destaque: "Por que meu pastor não vota no Sarto?", "Sou evangélico(a), por que não devo votar no Sarto?" e "Portanto, no próximo domingo não se omita, vote em defesa da família e da sua fé".

Além de fazer referências a supostos posicionamentos de Ciro Gomes, apoiador de Sarto, sobre fechamento de templos e "fim da moral cristã", diz que o grupo do candidato é "totalmente comprometido com a política gay para as crianças" e teria implementado, na cidade de Sobral, o "ensino da ideologia de gênero, que visa erotizar nossos filhos". Afirma ainda que o grupo é favorável ao aborto. Recortes de manchetes de jornais são utilizados para "confirmar" todo o exposto, sem vinculação a cada denúncia e desprovidos de contexto. Ocorre que Sarto está longe de ser um candidato radical, sendo melhor classificado como um político tradicional, sem participação em debates mais polarizados pelos diferentes espectros políticos.

O panfleto, embora não seja assinado, repete argumentos que têm sido espalhados também por meio de vídeos nas redes sociais. Em um deles, o pastor Silas Malafaia cita que os partidos de esquerda foram a favor da "ideologia de gênero", que seria um "lixo moral". Menciona ainda que os partidos teriam entrado no Supremo Tribunal Federal para impedir que mulheres denunciassem estupradores. Na verdade, a ação movida pelo PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT contesta portaria do Ministério da Saúde que estabelece uma série de diretrizes sobre o aborto em caso de estupro, que é permitido por lei.

A estratégia volta-se ao único setor em que Wagner lidera as intenções de voto. De acordo com pesquisa Datafolha divulgada em 20 de novembro, entre eleitores que se declararam evangélicos, o candidato do PROS concentra 53%, contra 35% de Sarto. Sarto aparecia com 59% e Wagner, com 41%. A necessidade de apelar para a mobilização do voto evangélico deve ter ficado clara para a equipe do candidato. Considerando as demais variáveis, Sarto lidera ou, no máximo, empata. Interessante perceber que, nesta pesquisa, a diferença era menor que a visualizada pelo Ibope. Mesmo entre católicos, Sarto contava com 60% das intenções. O adversário, com 35%.

A mobilização de conteúdos de cunho religioso não tem sido a única estratégia contra Sarto. No sábado (21), a Justiça concedeu direito de resposta após Capitão Wagner disseminar conteúdo ligando o pedetista a facções criminosas, afirmando que estas permitiriam a campanha dele, o que seria indício de proximidade.

Por outro lado, assim como desde o início da campanha, os ataques contra Wagner centram-se na participação na greve da Polícia Militar em fevereiro deste ano, apontadas como motim em comunicações de candidatos e políticos, como já mostramos neste Observatório, e em imagens que povoam grupos de WhatsApp e redes sociais em geral. É difícil não associar o limite de crescimento de Wagner exatamente à vinculação com a pauta e grupos que o alçaram à política institucional. Com dificuldades de tornar o teto mais distante, seus apoiadores buscam aproximá-lo do setor mais conservador, com o qual ele buscou evitar ser rotulado no primeiro turno, o que, inclusive, o fez evitar a presença explícita de Jair Bolsonaro na campanha.

O "kit gay" volta às eleições no Rio de Janeiro

A mobilização do sentimento religioso conservador tem ocorrido com força também no Rio de Janeiro. O bispo e atual prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) aparece bastante distante do primeiro lugar na última pesquisa Datafolha, Eduardo Paes (54%), registrando apenas 21% das intenções de voto. O levantamento foi divulgado no dia 19. De lá para cá, como noticiou o UOL, moradores receberam panfleto apócrifo que dizia, sem provas, que Paes (DEM) é a favor da legalização do aborto, da liberação das drogas e do "kit gay" nas escolas municipais. No folheto, assinado pela própria campanha de Crivella, Paes aparece ao lado de Marcelo Freixo (PSOL), apresentado como "amigo" do candidato.

Não parou por aí. Em vídeo divulgado nas redes, Crivella disse que o PSOL tentaria implementar "pedofilia nas escolas", em um eventual governo de Eduardo Paes (DEM). A mentira acabou gerando muita reação negativa. Levantamento feito a pedido de O Globo no Twitter mostrou que 95% das mensagens foram de crítica à declaração de Crivella. O principal influenciador do debate foi o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL). Não é possível mensurar, contudo, o alcance desse tipo de conteúdo em grupos menos abertos ao contraditório, como grupos religiosos no WhatsApp. De todo modo, o exemplo do Twitter e os resultados das pesquisas no Rio são úteis para notarmos que não basta produzir um conteúdo apelativo para crescer.

Complexidade no processo de comunicação e decisão do voto

O processo de comunicação e a própria decisão pelo voto são muito complexos. Na reta final da corrida eleitoral, como em 2018, fica nítida a tentativa de mobilização do eleitorado conservador por meio do destaque a temas relacionados a gênero e religião, com o objetivo de influenciar especialmente o voto de evangélicos conservadores. Se, no primeiro turno, as campanhas estavam pulverizadas entre diversas candidaturas e optaram por um discurso mais ameno, de apresentação dos prefeituráveis e de suas propostas, agora a polarização parece voltar à tona. Superar esse tipo de instrumentalização com amplo debate na sociedade é necessário para frear ou, ao menos, reduzir o impacto das campanhas de desinformação.

*Helena Martins é professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), é jornalista e doutora em Comunicação Social pela UnB, com período sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg) da Universidade de Lisboa. Editora da Revista Eptic, é pesquisadora do GT Economía política de la información, la comunicación y la cultura da Clacso e integrante do Intervozes.
Luciana Santana é mestre e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estância sanduíche na Universidade de Salamanca. É professora adjunta na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), líder do grupo de pesquisa: Instituições, Comportamento político e Democracia, e atualmente ocupa a vice-diretoria da regional Nordeste da ABCP.

Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.