O Goebbels caipira: a degradação da democracia é uma ameaça à... democracia
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Há algo de errado com o regime democrático quando vozes as mais diversas se veem na contingência de vir a público para declarar e reiterar que a democracia não está sendo ameaçada. Se não está, a que propósito servem tais declarações? Trata-se de meros exercícios retóricos contra adversários intelectuais? Há um esforço para normalizar a estupidez e a agressão a valores civilizatórios, como se tais práticas, afinal, também fizessem parte do jogo. Talvez seja necessário definir o que se entende, então, por democracia. Resumir-se-ia a um conjunto de procedimentos para escolha de representantes? Esse é apenas o instrumento formal da cultura democrática.
Quando um delinquente intelectual como Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura, resolve mimetizar e citar Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, o que menos importa, convenham, é o ato em si. Cumpre ficar atento ao conjunto de valores e ao movimento que o conduziram ao cargo. Ao fazê-lo, o bobalhão explicitou a dimensão intestina, em sentido amplo, do governo em sua área de atuação. O eventual parafuso a menos do rapaz, como sugeriu Olavo de Carvalho, o Rasputin da periferia do capitalismo, não está no conteúdo enunciado, mas no despudor em expor as entranhas de parte considerável do governo.
Estamos a falar de um tipo de tolo que não soube verter em linguagem truculenta, mais ainda aceitável para os critérios lassos em curso, as intenções de milícias ideológicas aboletadas no governo e que, sim, odeiam e repudiam as principais virtudes da democracia: a pluralidade, a diversidade, a dissensão, a contestação, a proteção às minorias. Notem que me refiro aqui ao conjunto de afirmações negativas que definem um regime democrático. Afinal, nas tiranias, há governo, mas inexiste oposição; nas tiranias, também é possível dizer "sim" — como é nas democracias, mas só nestas o "não" é um valor de igual grandeza ou superior. O que legitima a vontade da maioria num regime de liberdades é a expressão da vontade da minoria.
Por que digo isso? Porque a estupidez de Alvim teria passado em branco — mesmo com o Wagner ao fundo, que nazista não tinha como ser, note-se, embora antissemita — não tivesse ultrapassado a linha que separa o fingimento da sinceridade. E ele a ultrapassou ao repetir uma fala de Goebbels, expondo, então, uma das óbvias referências intelectuais do governo Bolsonaro: o fascismo — e, no caso, na sua versão mais virulenta, que é o nazismo.
O fato de o presidente contar com o apoio de importantes setores da comunidade judaica no Brasil — mas também há os que o repudiam — e de ter no governo de Benjamin Netanyahu um aliado não altera a essência das coisas. Estamos falando de questões conjunturais, que ainda precisam ser devidamente estudadas e caracterizadas. Um dos inimigos demonizados, mundo afora, pela extrema-direita de que Bolsonaro é a encarnação no Brasil é o investidor George Soros. Na Hungria de Viktor Orbán, o Bolsonaro de lá, Soros não é considerado apenas um financiador do tal globalismo, que estaria associado ao comunismo para dominar o mundo. Não! Por lá, a sua primeira característica que serve à demonização é o fato de ser judeu.
No fim das contas, não é preciso ser muito sagaz para perceber que todas as teorias conspiratórias hoje em curso — em especial aquela veiculada por Olavo de Carvalho — são herdeiras dos "Protocolos dos Sábios de Sião", a farsa sobre uma suposta conspiração judaica para dominar o mundo, contando com a sujeição voluntária das vítimas, que facilitariam o trabalho de seus futuros algozes. Ora, não está aí o pilar principal da bobajada olaviana? O Brasil e o mundo estariam expostos, sem saber, à influência do globalismo e do comunismo. Dito de outro modo: os judeus dos Protocolos estariam vestindo hoje outra casaca.
Alvim foi chutado da Secretaria de Cultura. Um pateta a menos. Mas as teses degradantes de que ele era o porta-voz continuam em vigor, pouco importando se teremos a frente do setor a "Namoradinha do Brasil" ou uma bruxa de verruga no nariz. E-mail confidencial a que o site The Intercept Brasil teve acesso, enviado na última terça-feira a diretores de entidades como a Agência Nacional do Cinema e a Fundação Nacional das Artes por Elton Medeiros, assessor do gabinete do secretário de Cultura, afirma o seguinte:
"Há o interesse precípuo em promover o renascimento no cenário cultural e artístico, fortalecidos por princípios e valores da nossa civilização, onde a Pátria, a Família, a determinação e, em especial, a nossa profunda ligação com Deus, norteie o que nos propomos a realizar. Que o nosso trabalho tenha as virtudes da fé, da lealdade, da coragem e da luta contra o que degenera; e que estas virtudes sejam alçadas ao território sagrado das obras de arte. Uma Cultura com obras que configurem toda a importância para a harmonia dos brasileiros com a sua terra e sua natureza, elevando a nação acima de interesses particulares."
Trata-se de um pastiche da concepção fascista — particularmente nazista — de cultura. Se Alvim tivesse se limitado a ler essa bobajada autoritária no ar, estaria ainda na Secretaria de Cultura, elogiado pelo chefe como um homem público exemplar, a exemplo do que fez Bolsonaro na live de quinta-feira. O que vai acima traz rigorosamente o mesmo conteúdo da fala de Goebbels. Parece que Alvim chegou à conclusão precipitada de que já não era mais necessário fingir.
A democracia está sob ameaça por isso? Digo, sem medo de errar, que está sendo cotidianamente degradada. Reitero o que já escrevi aqui: Bolsonaro repete Goebbels todos os dias, às portas do Palácio da Alvorada, quando faz ataques boçais à imprensa, para gáudio e satisfação dos grupelhos de fanáticos que lá estão para aplaudi-lo e para vaiar os jornalistas.
A democracia se degrada a cada vez que o meio ambiente é tratado como inimigo do desenvolvimento e como mera engrenagem de uma conspiração internacional contra o Brasil. A democracia se degrada a cada vez que minorias são gratuitamente atacadas, com o chefe do Executivo sendo o principal porta-voz da intolerância e da violência. A democracia se degrada a cada vez que a oposição é tratada como inimiga do país — afinal, repita-se, é a existência de quem se opõe que define o regime democrático.
Parece-me desnecessário haver um golpe de estado para que se reconheça o risco à democracia, não é mesmo? Até porque, nessa hipótese, o risco já terá ficado para trás.