"Domésticas na Disney" de Guedes é expressão do viés antipobre do governo
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Paulo Guedes, ministro da Economia, erra ao se expressar até quando diz coisas que fazem sentido. Participou nesta quarta de um seminário em Brasília. Resolveu dar-se a digressões sobre juros e câmbio. Mandou ver:
"O câmbio não está nervoso, mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear o Brasil, vai conhecer o Brasil. Está cheio de coisa bonita para ver..."
Para lembrar: o dólar fechou nesta quarta a R$ 4,3505, com alta de 0,55%. O real é a moeda que mais se desvaloriza no mundo.
Até Guedes é capaz de perceber quando Guedes exagera. Tentou consertar. Teve de parar a frase no meio porque percebeu que era impossível arrumar o discurso:
"Antes que falem: 'Ministro diz que empregada doméstica estava indo para Disneylândia'. Não! O ministro está dizendo que o câmbio estava tão barato que todo mundo está indo para a Disneylândia, até as classes sociais mais...?"
E continuou:
"Todo mundo tem que ir para a Disneylândia conhecer um dia, mas não três, quatro vezes por ano. Porque, com dólar a R$ 1,80, tinha gente indo quatro vezes por ano. Vai três vezes para Foz do Iguaçu, Chapada Diamantina, conhece um pouquinho do Brasil, vai ver a selva amazônica. E, na quarta vez, você vai para a Disneylândia, em vez de ir quatro vezes ao ano".
Nas suas férias, o ministro viajou para a Miami, mas ele não é empregado doméstico, certo?
VIÉS ANTIPOBRE
Já apontei diversas vezes o viés antipobre do governo. Tanto é assim que inexistem medidas que beneficiem os mais vulneráveis. E os programas que estavam em curso, a exemplo do Bolsa Família, estão emperrados.
Vamos lá. O ministro tocou, sim, em aspectos relevantes. Lembrou que o real desvalorizado faz bem às exportações. Tem razão. Afirmou que, assim, há "substituição de importações", expressão que já foi demonizada por liberais no passado. Não estava defendendo uma política de fechamento da economia, claro!, mas, também em tese, é fato que importações mais caras podem beneficiar a combalida indústria nacional.
Isso faz sentido? Faz. Assim como procede a tese de que é preciso gastar menos com o funcionalismo. O que não dá é para chamar milhões de pessoas de "parasitas", afirmando, depois, que retiraram sua frase de contexto.
VOLTEMOS ÀS EMPREGADAS
O doutor sabe ser parolagem de arrogantes essa conversa de que domésticas viajavam para a Disney. Ele estava apenas usando uma metáfora, talvez metonímia, para designar as "pessoas mais..." E o adjetivo lhe faltou na hora. Evitou a palavra óbvia: "pobres".
Na verdade, corrijo-me. Guedes estava sendo hiperbólico. Ele queria falar dos remediados, da classe média, dos não-ricos que ousam fazer uma viagem internacional sem que, a seu juízo, tivessem condições para tanto. E como ele resolveu representar essa inadequação? Com a imagem das "empregadas domésticas".
O problema, reitero, não está no que existe de raciocínio econômico na fala, mas no desrespeito com que o ministro trata o outro: quando não opta pela agressão, prefere usar milhões de trabalhadores domésticos como uma espécie de caricatura.
Esse é, afinal, um governo que não se preocupa em ser politicamente correto. De jeito nenhum! Na verdade, há a opção deliberada pelo politicamente incorreto. Entre explicar por que, segundo seu entendimento, o real desvalorizado e os juros baixos fazem bem para a economia e tratar com óbvio desdém as pessoas sem pedigree que viajavam para o exterior, ele escolheu o segundo caminho. E não lhe ocorreu ninguém mais humilde na escala das funções do que a empregada doméstica. Pensando bem, por que não?
Ele também se referiu, apelando a seu próprio estilo, aos modos do presidente da República. Disse:
"Não estou ligando muito para os maus modos do presidente, eu tenho maus modos também, vivo falando besteira. A forma a gente erra, mas o importante é o conteúdo"
Alguém precisa lembrar ao ministro que os meios qualificam os fins.
O problema é que os dois falam a besteira, e sobra para o Congresso arcar com as consequências.
Guedes se comporta como se estivesse operando um milagre na economia brasileira. Não está. A disparada do dólar só não salta para os preços porque não há demanda. As "empregadas domésticas" não estão indo às compras.
Leio na Folha:
"O varejo interrompeu sete meses seguidos positivos e registrou queda de 0,1% em dezembro em relação a novembro, informou nesta quarta-feira (12) o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No ano, o comércio cresceu 1,8%. A queda no mês das vendas de Natal veio na contramão da expectativa do mercado, que projetava alta de 0,2% nas vendas do período, segundo economistas consultados pela Bloomberg. Para o ano, eles estimavam alta de 3,3%."
De fato, não dá para ir à Disney. Nem para ver a casa de Roberto Carlos em Cachoeiro do Itapemirim.
Com alguma sorte, é possível tomar um Chicabon na padaria.
O "outro", especialmente quando pobre, tem de deixar de ser mera figura de baixa retórica no discurso de Paulo Guedes e de Jair Bolsonaro, a dupla que "vive falando besteira".
Comecei a contagem regressiva para o puxa-saquismo sair em defesa do ministro, sustentando que sua figura de linguagem foi retirada do contexto.