Reinaldo Azevedo

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Opinião

Bolsonaro, deixe de ser Coringa na vida. Aceite a democracia. Mas com cana

É uma gente ridícula, o que não quer dizer que não seja perigosa. A palavra "ridículo", talvez saibam, quer dizer "risível", "absurdo", "extravagante". Sempre tomo cuidado com os que se prestam à caricatura derrisória porque costumam ser pessoas sem nenhum amor próprio e, pois, senso de limites, o que significa que são capazes de tudo. É o lado que fascina no "Joker", não é mesmo?, no "Coringa", especialmente naquele vivido pelo brilhante Joaquin Phoenix. Ele ri do mal e não tem piedade de ninguém porque excessivamente piedoso consigo mesmo e com a própria incompetência. Indivíduos assim são um perigo público. Torturam e matam na certeza de que a vítima é culpada pelo próprio sofrimento. Psicologizei um pouco a bandidagem golpista. Mas até eles têm direito a uma alma, ainda que torta.

Os dados que vieram a público ontem podem ser, e são, estarrecedores, mas quem está surpreso. Os golpistas se organizaram para matar o presidente Lula; Geraldo Alckmin, o vice, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo. Quem se dispõe a tanto, convenham — vejam a magnitude da paixão político-homicida —, pode matar muito mais.

9 DE DEZEMRO: UM DIA REVELADOR
Falei em "planejamento"? O general Mário Fernandes mandou uma mensagem de áudio para Mauro Cid no dia 9 de dezembro. Estava feliz porque, disse, o então e ainda presidente Jair Bolsonaro havia aceitado o "assessoramento" oferecido por ele sua turma. Fazia parte do grupo de intenções homicida um agente federal que havia feito a segurança tanto do candidato Luiz Inácio Lula da Silva como do, pouco depois, presidente eleito. Fernandes deixou registrado:

"Força, Cid. Meu amigo, muito bacana o presidente ter ido lá à frente ali do Alvorada e ter se pronunciado, cara. Que bacana que ele aceitou aí o nosso assessoramento. Porra, deu a cara pro público dele, pra galera que confia, acredita nele até a morte. Foi muito bacana mesmo, cara. Todo mundo vibrando. Transmite isso pra ele".

De fato, naquele 9 de dezembro de 2022, Bolsonaro rompera o silêncio de 40 dias para conversar com defensores do golpe, recebidos nos Jardins do Palácio da Alvorada. Afirmou:
"Podem ter certeza de uma coisa: a minha força vem de Deus e de vocês. Se alguém acha que, um dia, nós abriremos mão da nossa liberdade, estão enganados. Alguns tiranetes ou tiranos tolhem a liberdade de muitos de vocês. Podem ter certeza de uma coisa: o nosso Exército é verde-oliva e é (sic) vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade. Estão esticando a corda. Faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse 'qualquer coisa' é o que está na nossa Constituição, na democracia e no nosso direito de ir e vir. Pode confiar na gente. Vocês, lá atrás, me deram esse voto de confiança. Enquanto vivo eu for, enquanto eu for presidente, só Deus me tira daqui. Eu estarei com vocês. (...) Não abriremos mão desse poder que vocês nos deram por ocasião das eleições de 2018".

A tentação de analisar a fala linha por linha é grande, especialmente quando diz que pode fazer "qualquer coisa", e que " esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição". Pois é... A Carta Magna é o oposto de "qualquer coisa" porque a democracia é o regime em que nem tudo pode. É o regime das leis.

O relevante nessa fala, no mesmo dia em que o chefe dessa gangue golpista e homicida afirmou que Bolsonaro aceitara seu "assessoramento", está no fato de que o então presidente deixava claro que algo iria acontecer e que seus golpistas não se frustrariam. Foi além e se ofereceu como mártir:
"Quantas vezes eu disse, ao longo desses quatro anos, que temos algo mais importante do que a própria vida, que é a nossa liberdade? As decisões, quando são exclusivamente nossas, são menos difíceis e menos dolorosas, mas, quando elas passam por outros setores da sociedade, elas são mais difíceis e devem ser trabalhadas. Se algo der errado, é porque eu perdi a minha liderança. Eu me responsabilizo pelos meus erros. Mas peço a vocês: não critiquem sem ter a certeza absoluta do que está acontecendo. Obviamente eu não estou aqui quebrando meu silêncio. Estou falando algo que sempre disse a todos vocês."

Este "cordeiro do povo" pegou o avião presidencial e se mandou do Brasil 21 dias depois, deixando os bananas acampados, não sem antes tentar resgatar joias milionárias que não lhe pertenciam. Seu "heroísmo", claro!, tinha limites. A fala deixa entrever que estava no comando de uma tentativa de golpe. Ao afirmar "se algo der errado, é porque eu perdi a minha liderança", parece evidente que se refere ao fato de que um presidente da República, por disposição constitucional, é o comandante das Forças Armadas — mas não para dar golpe de Estado.

E vidente que havia se encantado, então, com o "assessoramento" oferecido pelo general golpista e seu plano homicida.

Dois dias depois, voltou a desfilar pelos jardins do Alvorada, ocupado, mas uma vez, por seus seguidores, que cobravam uma intervenção militar. Eles gritavam em júbilo, e ele se comportava como quem passasse a tropa em revista. Repetiu a dose no dia seguinte, 12 de dezembro, acompanhando de um tal padre Genésio, que fez, como direi?, uma oração golpista para os "fiéis do golpe" que ali estavam. Não era uma data qualquer. Lula havia sido diplomado naquele dia de manhã. À noite, assistiu-se em Brasília a uma das manifestações mais violentas da jornada fascistoide, com quebra-quebra, veículos incendiados e tentativa de invasão da sede da Polícia Federal. Acreditem: nem a PF de Anderson Torres, então ministro da Justiça, nem a PM de Ibaneis Rocha, o sempre sumido quando a coisa esquenta, prenderam um miserável vagabundo.

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No dia 18, foi a vez de o general Augusto Heleno visitar o chefe no Alvorada. O então ainda ministro do GSI estava nos planos dos golpistas para assumir o comando do país — depois de mortos Lula, Alckmin e Moraes —, em companhia de Braga Netto, vice de Bolsonaro na chapa derrotada, em cuja casa, diga-se, segundo a PF, combinou-se a tramoia. Lá estava um grupo de fanáticos, como de hábito, embora em número bem menor. Heleno falou com a turma. Perguntaram a ele se um "ladrão" iria subir a rampa. Foi categórico: "Não!".

E por que Bolsonaro se escafedeu dois dias antes do término do mandato? Porque se deu conta de que não haveria apoio da caserna para a aventura homicida. O golpe, na forma imaginada, dera com os burros n'água. Restava como alternativa tentar levantar as PMs Brasil afora e provocar a intervenção das Forças Armadas, o que se tentou no 8 de janeiro de 2023. A única força que aderiu foi a chefiada por Ibaneis Rocha, que não foi encontrado no dia da intentona nem por Rosa Weber, presidente, então, do Supremo.

REUNIÃO DE 5 DE JULHO DE 2022
O plano liderado pelo general Mário Fernandes era mais uma tentativa, depois de outras que se frustraram. A primeira intenção, quando perceberam que não conseguiam intimidar o STF e o TSE era mesmo impedir a realização de eleições. Bolsonaro reuniu o Ministério e alguns agregados em que evidenciou esse propósito. Um dos mais eloquentes foi justamente Fernandes. Prestem atenção ao que disse:

"O que vai acontecer? É 64 de novo, com a ajuda do governo? É um governo militar? É o atraso [caso Lula vencesse] de tudo o que se avançou no país? Porque isso vai acontecer. O país vai ser todo desarticulado. Então [o golpe] tem que ser antes [da eleição]. Tem que acontecer antes. Como nós queremos: dentro de um estado de normalidade. Mas é muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país -- pensando assim, que aconteça antes -- do que assumir um risco muito maior da conturbação do 'day after', quando a fotografia lá [a de Lula] for de quem a fraude [das urnas] determinar."

Vejam a desfaçatez com que ele chama o golpe nas eleições de ação "dentro da normalidade". Esse cara era nada menos do que ministro interino da Secretaria Geral da Presidência. Com o insucesso da aventura homicida, virou assessor do deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ), o general que foi ministro do cloroquina quando a necropolítica deu as cartas na Saúde.

Nessa mesma reunião, Também Augusto Heleno se manifestou -- cotado para dividir o comando do país com Braga Netto se o plano tivesse dado certo. Também ele defendeu o golpe preventivo:
"O que tiver de ser feito tem de ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa, é antes das eleições; se tiver de virar a mesa, é antes das eleições. Depois das eleições, será muito difícil que tenhamos alguma nova perspectiva. Eu acho que as coisas tem de ser feitas antes das eleições. E vai chegar a um ponto em que nós não vamos poder mais falar. Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas. Isso para mim é muito claro".

Nesse mesmo encontro, o Messias que se descobriu apenas Jair, bateu o martelo. Então o negócio era impedir mesmo a realização das eleições:
"
Nós sabemos que, se a gente reagir depois das eleições, vai ter um caos no Brasil, vai ter uma grande guerrilha, uma fogueira o Brasil. Nós não podemos, pessoal, deixar chegar nas eleições e acontecer o que está pintado. Eu parei de falar em voto impre... em eleições faz três semanas. Vocês estão vendo agora que... Acho que chegaram à conclusão: a gente vai ter de fazer alguma coisa antes".

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CONCLUINDO
Bolsonaro não conseguiu reunir o apoio necessário para o golpe preventivo nem intimidar os tribunais. Veio a disputa. Como perdeu, considerou o resultado a evidência de que suas teorias conspiratórias estavam corretas. E tiveram início as articulações para tentar impedir a posse de Lula: a mais lhana era a decretação de estado de defesa só no TSE e nos TREs, declarando a nulidade do pleito. A mais ousada, a liderada pelo general "kid preto", segundo apuração da PF, previa assassinatos.

Fernandes comemorou, a 9 de dezembro de 2022, em áudio enviado a Cid, o fato de Bolsonaro ter aceitado o seu "assessoramento". Nesse mesmo dia, depois do combinado, o então ainda presidente rompeu o silêncio e deixou claro que não estava disposto a entregar o poder, a não ser a Deus. Falhou e fugiu do Brasil.

Lula assumiu. E ele será preso.

Bolsonaro, deixe de ser Coringa na vida.

Aceite a democracia.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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