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Reinaldo Azevedo

STF violará Carta se permitir afastamento de governador sem ainda ser réu

Queremos uma Constituição que seja aplicada ou uma outra, jogada no lixo, que nos condene ao vale-tudo? - Reprodução
Queremos uma Constituição que seja aplicada ou uma outra, jogada no lixo, que nos condene ao vale-tudo? Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/09/2020 06h04

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A questão do afastamento dos governadores terá de ser rediscutida pelo Supremo. Além de Wilson Witzel, há outros cinco sendo investigados. Ficar como está corresponde a permitir que valores constitucionais sejam jogados na lata do lixo. A depender da correção que se faça, vai se diminuir o arbítrio, mas nem por isso se vai recuperar o fundamento do devido processo legal. Explico.

Em 2017, na votação da ADI 5.540, o Supremo decidiu que as Assembleias Legislativas não precisam dar aval para o STJ receber uma denúncia contra os governadores. Assim, eles podem se tornar réus sem essa autorização. Várias constituições estaduais, de modo a meu ver correto, espelhavam regra da Constituição Federal, segundo a qual o presidente da República só pode der investigado por crime comum — ou de responsabilidade — com autorização de pelo menos dois terços da Câmara.

A razão por que o STF considerou a exigência inconstitucional é insondável. Notem: a Carta não impõe o aval das Assembleias, mas também não o veta. Ora, estamos numa República semifederativa ao menos. Se as Constituições estaduais queriam fazer essa escolha, que o fizessem — como fez, diga-se, a do Rio, mas isso foi tornado sem efeito.

Assim, o STF decidiu que o Superior Tribunal de Justiça é soberano para receber a denúncia. Mas não ficou por aí e resolveu tornar o rolo ainda maior. Concedeu ao STJ o poder de afastar ou não o governador por medida cautelar a qualquer momento do processo. Insisto que, mesmo em decisão tão esdrúxula, entende-se que esse "a qualquer momento" seria, ao menos, depois da aceitação da denúncia. E que se note: não está escrito em lugar nenhum que a decisão não pode ser monocrática.

Assim, a bagunça armada pelo ministro Benedito Gonçalves, que afastou Wilson Witzel por decisão monocrática, antes ainda do recebimento da denúncia — e, pois, ele nem réu é — foi armada pelo Supremo. Insisto num ponto: falamos do cargo eletivo mais arriscado da República hoje. Os chefes dos executivos estaduais têm menos garantias do que um vereador. É muito mais difícil destituir o síndico de um prédio do que um governador de Estado.

É claro que estamos diante de uma aberração que precisa ser corrigida. E qualquer correção será imoral e casuística se não alcançar Witzel. Não! Eu não gosto dele. Mas as leis não existem para agradar aqueles de que gosto e punir aqueles de que não gosto.

OS PRINCÍPIOS
Acho lamentável a qualidade de certo debate que anda por aí. Falam-se sem nenhum pudor duas coisas:
a: a decisão de afastamento não pode ser monocrática, como se o problema fosse apenas esse;
b: qualquer mudança não vale para o governador afastado do Rio.

Estamos diante do barbarismo jurídico.

Vá lá dispensar-se o aval da Assembleia para que se abra o processo. Sou contra a dispensa. Mas acho que disso tem de se encarregar o Congresso: que vote uma emenda estabelecendo a exigência. E vamos voltar ao debate: que trecho da Constituição veta tal mudança?

Qualquer solução que não passe, ao menos, pelo afastamento do mandato só depois de aceita a denúncia — e, pois, de o governador ser um réu — é essencialmente inconstitucional porque viola um dos pilares de um regime democrático e de direito. E o nome desse pilar é "direito de defesa".

O Brasil é signatário da Convenção Americana dos Direitos Humanos, o chamado "Pacto de San José da Costa Rica". A Alínea C do Item 2 do Artigo 8º assegura a todos o direito de defesa. O fundamento vem estampado no Inciso LV do Artigo 5º da Constituição. Reproduzo:
"LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Ora, como se pode falar em devido processo legal, contraditório e ampla defesa se um governador, numa ação penal, é afastado do seu cargo, ainda que provisoriamente, sem que a defesa tenha se manifestado, com a gravidade adicional de nem mesmo ter tido acesso aos autos?

Observem que o punitivismo desvairado atinge uma outra esfera da cidadania: a do direito ao voto. Um indivíduo ou 15 deles, pouco importa o número, cassam a vontade expressa por milhões sem que se conceda ao alvo da ação a chance ao contraditório.

Qualquer decisão do Supremo que não pressuponha a aceitação da denúncia para que se possa impor ao governador o afastamento estará violando a Constituição e o Pacto de San José da Costa Rica. Será arranjo de republiqueta de banana e de... bananas.

Voltem lá ao título do artigo. O "ser réu" implica que o governador pôde usar do direito de defesa ao menos uma vez...