STF violará Carta se permitir afastamento de governador sem ainda ser réu
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
A questão do afastamento dos governadores terá de ser rediscutida pelo Supremo. Além de Wilson Witzel, há outros cinco sendo investigados. Ficar como está corresponde a permitir que valores constitucionais sejam jogados na lata do lixo. A depender da correção que se faça, vai se diminuir o arbítrio, mas nem por isso se vai recuperar o fundamento do devido processo legal. Explico.
Em 2017, na votação da ADI 5.540, o Supremo decidiu que as Assembleias Legislativas não precisam dar aval para o STJ receber uma denúncia contra os governadores. Assim, eles podem se tornar réus sem essa autorização. Várias constituições estaduais, de modo a meu ver correto, espelhavam regra da Constituição Federal, segundo a qual o presidente da República só pode der investigado por crime comum — ou de responsabilidade — com autorização de pelo menos dois terços da Câmara.
A razão por que o STF considerou a exigência inconstitucional é insondável. Notem: a Carta não impõe o aval das Assembleias, mas também não o veta. Ora, estamos numa República semifederativa ao menos. Se as Constituições estaduais queriam fazer essa escolha, que o fizessem — como fez, diga-se, a do Rio, mas isso foi tornado sem efeito.
Assim, o STF decidiu que o Superior Tribunal de Justiça é soberano para receber a denúncia. Mas não ficou por aí e resolveu tornar o rolo ainda maior. Concedeu ao STJ o poder de afastar ou não o governador por medida cautelar a qualquer momento do processo. Insisto que, mesmo em decisão tão esdrúxula, entende-se que esse "a qualquer momento" seria, ao menos, depois da aceitação da denúncia. E que se note: não está escrito em lugar nenhum que a decisão não pode ser monocrática.
Assim, a bagunça armada pelo ministro Benedito Gonçalves, que afastou Wilson Witzel por decisão monocrática, antes ainda do recebimento da denúncia — e, pois, ele nem réu é — foi armada pelo Supremo. Insisto num ponto: falamos do cargo eletivo mais arriscado da República hoje. Os chefes dos executivos estaduais têm menos garantias do que um vereador. É muito mais difícil destituir o síndico de um prédio do que um governador de Estado.
É claro que estamos diante de uma aberração que precisa ser corrigida. E qualquer correção será imoral e casuística se não alcançar Witzel. Não! Eu não gosto dele. Mas as leis não existem para agradar aqueles de que gosto e punir aqueles de que não gosto.
OS PRINCÍPIOS
Acho lamentável a qualidade de certo debate que anda por aí. Falam-se sem nenhum pudor duas coisas:
a: a decisão de afastamento não pode ser monocrática, como se o problema fosse apenas esse;
b: qualquer mudança não vale para o governador afastado do Rio.
Estamos diante do barbarismo jurídico.
Vá lá dispensar-se o aval da Assembleia para que se abra o processo. Sou contra a dispensa. Mas acho que disso tem de se encarregar o Congresso: que vote uma emenda estabelecendo a exigência. E vamos voltar ao debate: que trecho da Constituição veta tal mudança?
Qualquer solução que não passe, ao menos, pelo afastamento do mandato só depois de aceita a denúncia — e, pois, de o governador ser um réu — é essencialmente inconstitucional porque viola um dos pilares de um regime democrático e de direito. E o nome desse pilar é "direito de defesa".
O Brasil é signatário da Convenção Americana dos Direitos Humanos, o chamado "Pacto de San José da Costa Rica". A Alínea C do Item 2 do Artigo 8º assegura a todos o direito de defesa. O fundamento vem estampado no Inciso LV do Artigo 5º da Constituição. Reproduzo:
"LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Ora, como se pode falar em devido processo legal, contraditório e ampla defesa se um governador, numa ação penal, é afastado do seu cargo, ainda que provisoriamente, sem que a defesa tenha se manifestado, com a gravidade adicional de nem mesmo ter tido acesso aos autos?
Observem que o punitivismo desvairado atinge uma outra esfera da cidadania: a do direito ao voto. Um indivíduo ou 15 deles, pouco importa o número, cassam a vontade expressa por milhões sem que se conceda ao alvo da ação a chance ao contraditório.
Qualquer decisão do Supremo que não pressuponha a aceitação da denúncia para que se possa impor ao governador o afastamento estará violando a Constituição e o Pacto de San José da Costa Rica. Será arranjo de republiqueta de banana e de... bananas.
Voltem lá ao título do artigo. O "ser réu" implica que o governador pôde usar do direito de defesa ao menos uma vez...