Regimento do STF: A monocracia punitivista é mais sábia que a garantista?
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Estão em debate no Supremo algumas mudanças no Regimento Interno. Na semana retrasada, Luiz Fux propôs, de surpresa, que as ações penais saiam das turmas e migrem para o pleno. A alteração foi vista como uma vitória da Lava Jato porque, assim, o petrolão deixa a Segunda Turma. Tenho para mim que a predição não vai se concretizar. Há muita gente respirando aliviada porque, desse modo, tem fim, para efeitos penais, aquela que era chamada de "Câmara de Gás", não por bons motivos, porque nunca é: a Primeira Turma — o apelido se devia à maioria que se formava, não a todos os votos.
Nota: a alteração vale para aceitação de denúncias e para os julgamentos.
Vamos ver: o "espírito oficial" da coisa é prezar o pleno, certo?, as decisões colegiadas. E, por óbvio, quanto mais colegiadas elas sejam, melhor! Desde que haja sinceridade, não oportunismo. Querem ver, no entanto, como as questões assumem contornos estranhos?
EDSON FACHIN, O MONOCRATISMO DA OPORTUNIDADE
O ministro Edson Fachin fez uma proposta. Quer inserir um Inciso XXI no Artigo 21 do Regimento Interno, que disporia o seguinte:
"[São atribuições do relator] deliberar sobre recebimento ou rejeição de denúncia ou queixa se a decisão não depender de outras provas"
Essa mudança estaria combinada com outras no Artigo 234, a saber:
Art. 234. Apresentada ou não a resposta, o relator deliberará sobre o recebimento ou a rejeição da denúncia ou da queixa se a decisão não depender de outras provas.
§ 1º Contra a decisão do relator que receber ou rejeitar a denúncia ou a queixa, caberá agravo regimental para o órgão colegiado competente no prazo de cinco dias.
§ 2º É facultada a sustentação oral, pelo tempo máximo de quinze minutos, no julgamento de que trata o parágrafo anterior."
Que coisa feia de ver! Então o ministro que votou a favor de que se retirem as ações penais das Turmas quer dar superpoderes ao relator — leia-se: Edson Fachin? Hoje, uma denúncia só pode ser aceita ou rejeitada pela Turma ou pelo pleno — depois da decisão da alteração da semana retrasada, só pelo conjunto dos ministros.
Tomou o cuidado de alterar o Artigo 234 para que se possa apresentar agravo da decisão — isto é, para que se possa recorrer.
Dirão vocês: "Ah, mas dá na mesma!"
Não!
Há dois problemas aí: introduz-se uma etapa a mais no andamento do processo, certo? Também aumenta o tempo. "O relator podendo aceitar a denúncia é mais rápido". Errado! Como haverá o recurso, fica tudo parado à espera de que se vote o agravo.
Além do próprio Fachin, ficaram a favor dessa estrovenga Dias Toffoli, Celso de Mello, Luiz Fux e Roberto Barroso. Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski pediram destaque. Marco Aurélio fez, na prática, proposta diversa. Alexandre de Moraes lembrou um detalhe que os quatro favoráveis à tese talvez não tenham percebido: a alteração é ilegal. Foi seguido por Rosa Weber e Cármen Lúcia.
"Ilegal, Reinaldo?"
Sim! Ilegal!
A Lei 8.038, que trata das ações penais que tramitam no STJ e no STF, prevê no Artigo 6º:
"O relator pedirá dia para que o Tribunal delibere sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras provas.
(...)
§ 2º - Encerrados os debates, o Tribunal passará a deliberar, determinando o Presidente as pessoas que poderão permanecer no recinto, observado o disposto no inciso II do art. 12 desta lei."
O Supremo não pode fazer uma alteração no seu Regimento Interno que contrarie uma lei votada pelo Congresso. O primeiro pacote anticrime, formulado por Moraes, base daquele que foi aprovado pela Câmara, trazia essa alteração usando o caminho certo, mas ela foi rejeitada pelo Congresso.
Trago aqui a questão para ilustrar as contradições das excelências. Se o objetivo é prestigiar o colegiado, como é que se inventa a figura do relator monocrático?
O QUASE-HABEAS CORPUS
Outra mudança diz respeito à concessão de habeas corpus. A quatro mãos, Dias Toffoli e Roberto Barroso apresentaram uma alteração que não pode seguir adiante porque se inventaria uma zona cinzenta do quase-habeas corpus. Vamos ver.
Hoje, o Inciso V do Artigo 21 do Regimento Interno define o seguinte em caso de habeas corpus -- na verdade, de "medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa":
"Determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, ad referendum do Plenário ou da Turma;"
Ou seja: o pleno ou a turma acabarão decidindo, mas quando o relator levar a medida à votação. A eficácia da decisão, em caso de concessão do habeas corpus, no entanto, é imediata.
Toffoli e Barroso sugeriram a seguinte redação:
"Determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, submetendo-as imediatamente ao Plenário ou à respectiva Turma para referendo, preferencialmente em ambiente virtual."
Mas a coisa não vem sozinha. Acrescentar-se-ia um exótico Parágrafo 5º, que estabelece:
"§ 5º A decisão proferida nos termos do inciso V somente produzirá efeito após a liberação do referendo para julgamento pelo colegiado competente, sendo o processo automaticamente inserido na pauta da sessão imediatamente posterior."
Pela ordem!
Marco Aurélio, nesse caso, deu o voto que eu daria: "Não"! Elimina-se o caráter de urgência do habeas corpus. Mendes e Lewandowski pediram destaque. Rosa Weber seguiu o voto dos dois. Moraes disse "sim" à mudança do Inciso e "não" ao Parágrafo 5º, que, com efeito, é notavelmente absurdo. Afinal, cria-se um meio habeas-corpus, que é habeas corpus nenhum: foi concedido, mas não vale.
Celso de Mello, Dias Toffoli, Edson Fachin e Roberto Barroso defendem a mudança nesse termos. Fux havia concordado, mas depois pediu vista. Cármen Lúcia deu um voto incompreensível. Concordou com Inciso e Parágrafo, mas, em relação a este, "atentando-se a ser possível de, motivadamente, ser afastada para cumprir a finalidade acautelatória." Seja lá o que isso signifique.
É claro que não posso entender que ministros sejam favoráveis a que relatores decidam sozinhos se denúncias serão ou não aceitas, mas submetam o habeas corpus a uma espécie de burocracia que altere a sua essência: impedir um dano iminente que pode não ter reparação.
Há outras mudanças em debate, de que ainda falarei aqui.
É preciso saber o que se quer. Os ministros que pretendem mudar o Regimento Interno estão mesmo procurado a harmonia e a colegialidade ou se dedicam a estratagemas para tentar vencer aqueles que consideram seus adversários na Corte.
Quando vejo o agora entusiasta da colegialidade Luiz Fux e lembro a sua trajetória de liminares monocráticas, tenho o direito de desconfiar. Lembro, para encerrar, que o ministro impôs censura dupla à Folha de S. Paulo: proibiu o jornal de entrevistar Lula. Não há lei que o autorize a tanto. Não menos grave: decidiu que, se a entrevista já tivesse sido feita, não poderia ser publicada. Nesse caso, arregaçou com os Artigo 5º e 220 da Constituição.
Fica uma pergunta para encerrar: A MONOCRACIA QUE PUNE É MORALMENTE SUPERIOR À MONOCRACIA QUE LIBERTA?
Estamos debatendo mesmo a inconveniência da monocracia, ou o punitivismo está tentando validar gol de mão?