Kassio defende princípios garantistas; mas nós o conheceremos pelos frutos
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Kassio Nunes Marques, futuro ministro do Supremo, saiu-se bem na sabatina da Comissão de Constituição e Justiça. Foi aprovado por 22 a 5. O plenário endossou seu nome por 57 votos a 10. Precisava de 41. Deu respostas satisfatórias à maioria das indagações, e o que não me pareceu absolutamente correto traduz demandas que estão em curso na sociedade. Em seu lugar, acredito, qualquer um de nós evitaria a bola dividida. Deixo claro: a sinalização é, no geral, positiva e aponta para o garantismo. Se vai fazer bobagem quando for dono do voto, meus caros, bem..., aí só as demandas poderão dizer.
Já vi gente passar por ali fazendo juras inquebrantáveis de amor à Constituição, às leis e, bem..., serei genérico: ao progressismo. Na cadeira, converteu-se numa mistura de Savonarola com Torquemada, transformando a toga na chama que acende a fogueira do punitivismo. Não é mesmo, Edson Fachin? Assim, a minha avaliação se resume às respostas da sabatina.
O já ministro aprovado apelou à Bíblia. Faço-o eu também, parodiando "Mateus 7", entre os versículos 13 e 21.
Embora as vagas do Supremo sejam estreitas, suas portas são largas, e espaçoso é o caminho que leva à perdição. Poucos conseguem encontrar a vereda estreita da Constituição. Nessas coisas, aprendi a tomar cuidado com os falsos profetas que se vestem de ovelhas, escondendo a natureza de lobos ferozes. Conheceremos Kassio por seus frutos. Não se colhem uvas de espinheiros. Nem todo aquele que diz "Constituição, Constituição" entrará no reino do estado de direito, mas só aquele que põe em prática o que vai escrito na Carta.
Assim, vamos esperar os votos. Mas ele teve de se submeter à sabatina. Faço aqui um apanhado do que me pareceu relevante. Sua fala segue em vermelho. Comento em azul.
Democracia
"A defesa da democracia é pilar fundamental da Constituição Federal. Neste espaço, defendemos a vida, a liberdade e a diversidade cultural e religiosa da população brasileira."
Há, sim, um tanto de platitude. Sempre que alguém liga a democracia à ideia de diversidade, no entanto, dá um voto em favor da tolerância.
PRISÃO APÓS 2ª INSTÂNCIA
"Essa matéria está devolvida ao Congresso Nacional. Entendo que é o foro mais que competente para traçar essas discussões, para convocar a sociedade, ouvir os clamores populares. Não entendo que o Judiciário seja o foro adequado."
Nesse particular, cede ao alarido e às pressões, inclusive de boa parte da imprensa, que há tempos esqueceu o caminho do garantismo. A boa resposta não é essa. O Inciso LVII da Carta, que é cláusula pétrea -- e, pois, não poderia ser alterada nem por emenda --, define que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em jugado de sentença penal condenatória". Fim de papo. Ninguém quer dizer "ninguém". Culpado quer dizer "culpado". E trânsito em julgado quer dizer "trânsito em julgado". Ponto final. O resto é direito criativo. Havendo razões para prender, existe o Artigo 312 do Código de Processo Penal, que permite a prisão em qualquer fase do processo. Já se prende no Brasil antes mesmo da instauração do inquérito e sem que haja flagrante, uma aberração ilegal. Isso, sim, deveria preocupar a imprensa realmente empenhada em fazer valer o estado de direito. Mas vá lá: será que ele poderia responder algo diferente sem criar estardalhaço inútil e ser contraproducente? Resposta: não!
COMBATE À CORRUPÇÃO
"O combate à corrupção também é ideário essencial para que se consolide a democracia no país, mas essa postura não deve se concentrar neste ou naquele indivíduo, nessa ou naquela instituição, mas deve ser uma atitude comum às diversas instâncias, instituições e pessoas."
Resposta corretíssima. Combater a corrupção não é uma missão divina a cargo de milicianos que empreendem guerras nada santas. E, por óbvio, não comporta senhores da guerra, como juízes candidatos a vedetes, que subordinam o devido processo legal a seus interesses políticos.
OPERAÇÃO LAVA JATO
"Eu, pessoalmente, não tenho nada contra nenhuma operação que eu tenha notícia no Brasil, principalmente quando é conformada com estes elementos: participação do MP, Poder Judiciário e polícias judiciais, ressalvando a competência do Poder Judiciário para promover os ajustes que se façam necessários se, numa eventualidade, houver o descumprimento da lei e da Constituição."
Excelente a parte em que afirma que cabe ao Poder Judiciário recolocar nos trilhos da lei o que deles sair. Faço uma ressalva: o Poder Judiciário não faz parte de força-tarefa nenhuma. No dia em que for, o juiz deixará de ser juiz para ser parte. E juiz não é nem polícia nem Ministério Público. É claro que a Lava Jato entortou a boca do país pelo mau uso do cachimbo da ilegalidade, como revelou a Vaza Jato de maneira inquestionável.
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
"O princípio da presunção de inocência perpassa todas as crises atuais: a criminalização da advocacia, a criminalização da política, e isso é muito caro à sociedade brasileira. Não podemos limitar a incidência desse princípio apenas à prisão em segundo grau."
Perfeito! A questão da presunção de inocência não se limita ao momento da execução da pena. O direito de defesa, no Brasil, passa por um período inédito de desprestígio, inclusive -- e o ministro aprovado lembrou muito bem --, com a demonização da advocacia.
GARANTISMO
"O garantismo não é sinônimo de leniência no combate à corrupção. Absolutamente! O garantismo judicial é tão-somente dar ao cidadão brasileiro, seja ele quem for, a garantia de que ele percorrerá o devido processo legal e legitima defesa."
Boa resposta. Aliás, considero um misto de pornografia moral com perversão doutrinária a suposição de que se possa ser outra coisa em direito que não um "garantista". A propósito: os adversários do garantismo ousariam dizer o nome do que praticam, por favor? Quem se opõe às garantias da lei é favorável exatamente a quê? A diferença entre o linchamento e uma ilegalidade praticada com punhos de renda para punir em nome da convicção, mas ao arrepio das provas, é apenas de grau e de feiura. Em essências, são a mesma coisa.
COMBATE ÀS FAKE NEWS
"A liberdade de expressão não significa que atos ilícitos possam ser cometidos. O exemplo disso são os tipos penais da injúria, da calúnia e da difamação. [...] Concordo com vossa excelência quando diz que devemos, não só o Judiciário, mas a sociedade, inibir as fake news. Isso não se retrata na liberdade de expressão. A preocupação do Poder Judiciário deve ser a aferição desses conteúdos."
Resposta correta. Dizer o quê? Os crimes contra a honra são uma evidência, que já está na legislação, a nos alertar que nem tudo é permitido em nome da liberdade de expressão. As "fake news" continuam a desafiar o direito e o poder coativo do Estado. Ninguém ainda encontrou o modo adequado de coibi-las com eficiência e de punir seus autores, mas isso tem de ser buscado.
ABORTO
"Eu entendo que o Poder Judiciário já, muito provavelmente, exauriu as hipóteses dentro dessa sociedade. Só se, eventualmente, vier a acontecer algo que hoje é inimaginável, alguma pandemia, algum problema como no caso de anencefalia provocado pela zika, algo nesse sentido, que transformasse a sociedade. [...] Do meu lado pessoal, eu sou um defensor do direito à vida e tenho razões pessoais para isso."
Saiu-se bem, nem ao gosto da estupidez reacionária nem de acordo com a vontade dos defensores da ampla descriminação do aborto. A questão é bem mais ampla e complexa. Pessoalmente, acho que as esquerdas cometem um erro -- mas isso é lá com ela -- quando reduzem o aborto a um capítulo dos "direitos reprodutivos" ou quando inserem a oposição a tal prática no rol das "ideias reacionárias". É, acima de tudo, contraproducente. Kassio não está endossando os "Vigias de Damares". Mas está deixando claro que não vai aderir a descriminação do aborto fora das situações previstas no Código Penal -- estupro e risco de morte da mãe -- e daquela já decidida pelo Supremo: casos de anencefalia -- e olhem que, nesse particular, o tribunal costeou o ato legislativo, o que não lhe cabe fazer.
ARMAS
"Tenho arma em casa, mas eu não ando armado. Meu perfil pessoal é daquele que a arma serve, a depender de cada circunstância, onde o cidadão mora, o nível de violência da cidade, para a proteção da sua residência. Mas não é uma posição jurídica. É uma posição pessoal."
Sendo indicado por quem foi, trata-se de um rasgo de luz, não é mesmo? Minha posição é rigorosamente a mesma. Não me oponho a que o sujeito tenha uma arma legal -- embora eu não tenha. Mas sou radicalmente contrário ao porte. Há uma relação direta, escancarada e inquestionável entre o número de armas em circulação e o número de homicídios. A Europa desenvolvida tem o mesmo IDH dos Estados Unidos. Os homicídios variam de 0,7 a 1,1 por 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, chegam a 5. Ademais, o ministro aprovado deixou claro que não vê a posse como um direito fundamental, daí que tenha dito ser uma questão pessoal, não jurídica.
ENCERRO
A árvore tem boa aparência. A sabatina ficou com cara de videira, para voltar a Mateus, não de espinheiro. A questão, agora é saber se vai dar uva ou espinhos.
Conhecemos o ministro pelos atos, pelos frutos.