A governadora que não repudiou as ideias nazistas do pai em nome da família
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O jornalista Fábio Bispo, do site The Intercept Brasil, estava presente à solenidade de posse interina — mais uma novidade do Brasil que primeiro pune para depois apurar — de Daniela Cristina Reinehr. Eleita vice-governadora de Santa Catarina na chapa de Carlos Moisés, afastado por até 180 dias num processo que ficaria bem na Berlim ou na Moscou dos anos 30, ela não teve a menor dúvida: discursou como quem vai ficar os próximos 26 meses no cargo. Ali, o chefe do Executivo escolhido pelo povo já era passado. Assista ao vídeo ao fim do texto.
O repórter houve por bem -- e como fez bem! -- fazer uma indagação a
Daniela Cristina, empossada legalmente, é certo, mas que discursou como usurpadora. E a resposta que ela deu tornou a pergunta ainda mais oportuna, ainda mais necessária. Transcrevo:
"No começo de sua fala, a senhora agradeceu à sua família. E o seu pai, como professor de história, pregava em sala de aula o negacionismo do Holocausto Judeu, inclusive utilizando livros de uma editora que foi condenada por contar mentiras sobre a Segunda Guerra Mundial. E, agora que a senhora é governadora de Santa Catarina, a gente quer saber: qual é a sua posição? A senhora corrobora essas ideias neonazistas, negacionistas do Holocausto?"
Comento a pergunta antes de transcrever a resposta. Em "Êxodo", do Versículo 1 ao 20, o Senhor Deus, ainda Senhor dos Exércitos, ainda antes de amansado pela mão do Filho — ou do Profeta verdadeiro ou falso, pouco importa, que se fez homem —, deixa claro que seu povo não há de adorar outros deuses nem desenhará imagens. E sentencia: "Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta gerações daqueles que me odeiam."
Nessa perspectiva horripilante, os filhos pagam pelas faltas dos pais. Não há perdão nem a quem não pecou. Fora da maldição religiosa, não pesam sobre os ombros da descendência os crimes dos genitores. Assim é no nosso direito penal, claro! Na área cível, filhos podem ser beneficiários de falcatruas financeiras. Aí a conversa é outra. Nesse caso, ainda que não possam ser acusados de crimes, há risco de que sejam alcançados pelas consequências da devida reparação. Mas seria minudência demais para este texto. Voltemos ao ponto.
A governadora interina poderia ter dito simplesmente: "Repudio as ideias do meu pai. O negacionismo do Holocausto Judeu é um crime de lesa humanidade". Altair Reinehr é um negacionista convicto. Há foto sua, já idoso, em frente à casa em que Hitler nasceu. Era um divulgador entusiasmado dos livros da Editora Revisão. Entre eles, está, por exemplo, "Acabou o Gás", de Siegfried Ellwanger Castan, o fundador da editora. Seus alunos no ensino médio testemunharam a sua convicção — entre eles, Leandro Demori, hoje diretor do The Intercept Brasil.
Não se esqueçam. Estamos falando do Holocausto.
Daniela Cristina deu a seguinte resposta, depois de lembrar que ela só é governadora interina porque, disse, não pode ser responsabilizada pelos atos do governador afastado:
"Eu espero, daqui para a frente, e em toda a história, ser julgada pelos meus atos, pelas minhas convicções e pela postura que eu sempre tive em tudo o que eu fiz. Eu realmente não posso responder, ser julgada ou condenada por aquilo que esse ou aquele pense (sic). Eu respeito as pessoas, independente do seu pensamento, eu respeito os direitos individuais e as liberdades. E qualquer regime que vá contra o que eu acredito, contra esses elementos que eu disse, eu repudio. Existe uma relação e uma convicção que move a mim, e eu acredito que a todos os senhores, que chama 'família'. E me cabe como filha manter a relação familiar em harmonia, independente das diferenças de pensamento, indiferente das defesas (sic). Eu sou uma pessoa que, como vocês, tem problemas, que tem diferenças no seu meio familiar, que sofre, que chora, que sorri, que vibra, mas que procura dar o seu melhor para cumprir a missão que me foi conferida pelo voto dos catarinenses. Eu realmente espero que eu seja julgada novamente, que os atos sejam apartados, como foi na Comissão Mista. Eu não quero ser arrastada por atos de terceiros, por convicções de terceiros. As minhas convicções estão muito claras nas redes sociais há muito tempo. Aliás, tem muito pouco de mim, do meu particular, mas tem muito do meu pensamento, do meu ativismo, e eu realmente peço que sejam apartados os atos e que eu seja julgada e avaliada pelo que eu faço, não por atos de terceiros".
A resposta é péssima. Pela ordem:
1 - criticou regimes autoritários, mas não o Holocausto. Não quer dizer que o defenda, claro! Mas quer dizer que não se deu conta de que há diferença entre o nazismo e ditaduras que ainda hoje existem mundo afora;
2 - não repudiou as ideias do pai, limitando-se a falar de "diferenças" que existem em todas as famílias. É verdade: as há para todos os gostos. Como é mesmo que Tostói abre o romance Anna Karênina? "Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira." Mas, reitero, fala-se aqui do nazismo e do Holocausto Judeu.
3 - associar o pensamento odioso do pai e sua independência em relação ao que ele pensa com a sua não-responsabilização no caso que afastou o governador evidencia que ela não se deu conta do que estaria moralmente obrigada a repudiar, sem que o tenha feito: o Holocausto em si e as ideias de Altair Reinehr.
4 - num momento particularmente patético, ela evoca a harmonia familiar para afirmar que convive com o que chama "diferenças". Estou entendendo errado, ou a governadora interina resolveu mostrar-se, vamos dizer assim, uma conservadora dos valores da família mesmo quando o Holocausto está em pauta? Querem que eu imagine um almoço de domingo em que o pai desanda a defender um regime genocida, e a governadora responderia com a "nonchalance" de quem torce para a Chapecoense, sabendo ser o pai Figueirense? Estamos falando do nazismo e do Holocausto Judeu.
5 - Se não consegue repudiar com a devida dureza o nazismo, o Holocausto e as ideias do pai por amor filial ou por alguma espécie de senso de dever, fazendo associações estapafúrdias, que tornam o Holocausto um fato prosaico, então algo de muito grave se passa naquele "particular" que ela diz não mostrar nas redes sociais.
O Brasil tem passado por um processo de naturalização da barbárie. Há 20 anos, essa fala da governadora interina, que discursa como eterna, seria, por si, um escândalo. Hoje, a muitos parece razoável que busque se distinguir das teses nazistoides do pai como quem se distingue dos atos do governador que foi afastado, como se fossem coisas equivalentes. Pior: evoca valores familiares para tentar protegê-lo de suas ideias criminosas. E o mais detestável das coisas detestáveis: trata o nazismo, com o consequente Holocausto Judeu, como uma das ditaduras quaisquer, dessas que se repudiam se não por convicção, por elegância ao menos. Há vinte anos, é bem verdade, governadores não seriam depostos sem o direito de se defender.
A governadora interina de Santa Catarina entrou no meu radar. Há, lamento, uma concepção torta de mundo na suavidade de seu discurso da usurpação.