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Reinaldo Azevedo

Mariana Ferrer 2: Tão grave como o "estupro culposo" é o "por merecimento"

Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado. Argumentação a que ele recorreu em tribunal é um perigo civilizatório - Reprodução
Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado. Argumentação a que ele recorreu em tribunal é um perigo civilizatório Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

04/11/2020 05h27

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Se "estupro culposo" — isto é, sem dolo — é uma expressão a que recorreu The Intercept Brasil para, como se diz lá, tornar clara a questão ao público leigo, uma coisa é certa: o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho não estava sendo apenas didático quando humilhou Mariana Ferrer de uma maneira miserável, sem que tivesse havido, ao menos até onde se pôde perceber, uma pronta reação do juiz, do Ministério Público e do próprio defensor da vítima. Assistiu-se a um espetáculo grotesco.

Se a questão é deixada sem resposta, o que se tem, ainda que certamente não seja esta a intenção de advogado, promotor e juiz, é algo ainda mais grave do que o impossível "estupro consentido". Criam-se as circunstâncias para o "estupro merecido", como certa vez aventou o então deputado Jair Bolsonaro, hoje presidente da República, ao agredir a deputada Maria do Rosário.

No caso de Ângela Diniz, amplos setores da sociedade passaram a considerar que o assassino era a vítima da mulher cruel, que "vivia mais na horizontal do que na vertical". Mariana foi tratada no tribunal, sem que houvesse nenhuma evidência, como alguém que havia preparado uma armadilha. O advogado do acusado exibe fotos da moça que ele diz serem sensuais, extraídas das redes sociais. Reproduzo as agressões:

ROSA FILHO: Essa foto aqui foi manipulada e tudo. Essa foto foi manipulada.

MARIANA: Muito bonita por sinal, o senhor disse, né?, cometendo assédio moral contra mim. O senhor tem idade para ser meu pai; tinha de se ater aos fatos.

ROSA FILHO: (Inaudível) uma filha do teu nível. Graças a Deus! E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. E não dá para dar o teu showzinho. Teu showzinho tu vais dar lá no teu Instagram depois pra ganhar mais seguidores. Tu vives disso, Mariana, vamos ser sinceros, fala a verdade! Tu trabalhavas no café, perdeste o emprego, estavas com o aluguel atrasado sete meses, eras uma desconhecida. Vives disso. Esse é teu ganha-pão, né, Mariana? A verdade é essa. É teu ganha-pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem.

Num outro momento, volta à carga:
ROSA FILHO: Só pra mostrar essa última foto que ela mandou o defensor público juntar e que ela diz que foi manipulada. Essa foto aqui foi extraída do site de um fotógrafo onde (sic) a única foto chupando o dedinho e com posições ginecológicas é só a dela. E com posições ginecológicas ali... É só a dela.

MARIANA: Mas eu estou de roupa, não tem nada demais mesmo! A pessoa que é virgem, ela não é freira, não, doutor. A gente tá no ano de 2020.

Mariana começa a chorar. O advogado investe:
ROSA FILHO: Não é freira. Não estou dizendo que é freira. Essas fotos não têm nada demais. Mas por que você apaga essas fotos, Mariana? E só aparece com essa sua carinha chorando? Só falta uma auréola. Não adianta vir com este teu choro dissimulado, falso, e essa tua lágrima de crocodilo.

MARIANA: Meu Deus!

PROMOTOR: Mariana, Mariana, se quiser recompor aí, tomar uma água, a gente suspende, tá? Não tem problema, tá?

MARIANA: Eu gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo, eu estou implorando por respeito no mínimo. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma que eu estou sendo tratada. Pelo amor de Deus, gente! Eu estou sendo destratada. Pelo amor de Deus, gente, o que é que é isso? Nem os acusados de assassinato são tratados como eu estou sendo tratada. Eu sou uma pessoa ilibada. Eu nunca cometi crime contra ninguém.

Eu respondo às perguntas de Mariana: ela estava sendo tratada como nem os réus, os criminosos, costumam ser tratados num tribunal, num julgamento dessa natureza. Há um decoro que impede esse massacre. E, infelizmente, sob o silêncio de juiz, promotor e de seu defensor.

Não examinei em detalhes as peças do processo para chegar aqui e afirmar: "Houve estupro". Nunca faço isso. Tampouco, por óbvio, endosso a tese da defesa: não houve. Exame colheu material genético do acusado no corpo de Marina e apontou rompimento então recente do hímen — ela diz que era virgem quando teria sido violentada. Outros que estiveram com ela naquela dia dizem que, após se encontrar com o acusado, não exibia alteração de comportamento.

O meu ponto aqui é outro. Especialmente grave, nesse caso, é a transformação da vítima em ré — se assim é, que se faça uma nova acusação e se abra um outro processo — e a criação de uma personagem malévola, que parece se expor de modo a merecer, então o estupro ou alguma forma de assédio em razão de seu suposto pouco recato.

É inacreditável que aquela que figura como vítima no processo tenha sido tratada dessa maneira. E olhem que doutor Rosa Filho já foi defensor de figuras polêmicas, para ser manso, como Sara Winter e Olavo de Carvalho. Certamente mereceram deferências que ele não dispensou a Mariana.

O ministro Gilmar Mendes se manifestou:
"As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram".

O Conselho Nacional de Justiça abriu procedimento para apurar a condução que o juiz Rudson Marcos deu ao caso. Otavio Luiz Rodrigues Jr., Sandra Krieger, Fernanda Marinela, Luiz Fernando Bandeira de Mello e Luciano Nunes Maia Freire, do Conselho Nacional do Ministério Público, assinaram requerimento em que pedem a instauração de Reclamação Disciplinar para apurar a atuação do promotor Thiago Carriço.

A expressão "estupro culposo" é um recurso editorial para chamar a atenção para o absurdo a que se assistiu. Reitere-se: o que não é força de expressão, o que é fato, é a demonização de Mariana Ferrer sob o silêncio, até onde se pode perceber, cúmplice daqueles a quem cabia conter o advogado.

O país não pode aceitar a tese do estupro por merecimento.