Mariana Ferrer 1: País vai ressuscitar os fantasmas do caso Ângela Diniz?
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Existe "estupro culposo"? A resposta, obviamente, é "não".
A questão tomou as respectivas consciências dos informados e as redes quando veio a público, por intermédio de reportagem do site The Intercept Brasil, o caso da influencer Mariana Ferrer, que abordarei em seguida. Vamos, como sempre, chegar ao "é da coisa". De saída, deixo claro aqui: o Brasil não pode correr o risco de ressuscitar os fantasmas judiciais de Ângela Diniz e Doca Street. Ele a matou no dia 30 de dezembro de 1976. A defesa de Doca conseguiu transformar o caso num julgamento sobre a moral de Ângela. Vale dizer: num estalar de dedos, a defunta estava em julgamento, não o assassino.
Mérito do advogado de Street, mas também da cloaca do Brasil. Seu defensor era Evandro Lins e Silva, um dos grandes criminalistas do país. Entrou para a história, entre outros feitos, por ser um dos três signatários da denúncia de impeachment contra Collor.
Emblema do progressismo "anticollorido", elaborou uma das teses mais reacionárias que já passaram pelos tribunais. Eu tinha 15 anos à época e me lembro muito bem de algo que li então, em algum lugar. Lins e Silva — e deve constar dos autos porque cito de memória, e garanto que esta é boa — afirmou que "Ângela vivia mais na horizontal do que na vertical".
A metáfora é clara demais para requerer explicação. O macho ofendido teria, então, o direito de ser um assassino — naquele caso, a situação seria especialmente humilhante porque Ângela teria traído Street com uma amante. Há muitos séculos de opressão da mulher na formulação.
Teve origem ali a campanha "Quem ama não mata". Como norte conceitual e político, é perfeito. De fato, não existe lei divina a respeito, já que o direito penal contemporâneo não se ocupa disso. Uma coisa é certa: quem comete crime tem de pagar, amando ou não.
Doca foi absolvido em julgamento posteriormente anulado. No segundo, foi condenado.
DE VOLTA A MARIANA FERRER
Escreveu o site The Intercept Brasil:
NA SEGUNDA SEMANA de setembro, a hashtag #justiçapormariferrer alcançou aos trend topics do Twitter. O motivo: chegava ao fim o julgamento do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem promoter catarinense Mariana Ferrer, de 23 anos, durante uma festa em 2018. Ele foi considerado inocente.
Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, "intenção" de estuprar. Por isso, o juiz aceitou a argumentação de que ele cometeu "estupro culposo", um "crime" não previsto por lei. Como ninguém pode ser condenado por um crime que não existe, Aranha foi absolvido.
A excrescência jurídica, até então inédita, foi a cereja do bolo de um processo marcado por troca de delegados e promotores, sumiço de imagens e mudança de versão do acusado. Imagens da audiência às quais o Intercept teve acesso mostram Mariana sendo humilhada pelo advogado de defesa de Aranha."
VAMOS VER
Nem promotor nem juiz empregam a expressão "estupro culposo". O próprio site informa em uma nota redigida na noite de ontem:
Atualização, 3 de novembro de 2020, 21:54: A expressão 'estupro culposo' foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo.
E, com efeito, não foi. É importante salientar que o próprio órgão acusador, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina, pediu a absolvição do acusado, o empresário André de Camargo Aranha. Mas não porque teria cometido o tal "estupro culposo". A razão foi outra. Em nota, informa o MP de Santa Catarina:
"O MPSC informa que o réu foi absolvido por falta de provas por estupro de vulnerável. Não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição do réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro".
Para lembrar: o promotor do caso é Thiago Carriço de Oliveira, que substituiu Alexandre Piazza. O juiz é Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis.
Li a manifestação final do Ministério Público e a sentença do juiz. Argumenta-se ali que, em casos de estupro, o testemunho da vítima tem sempre um peso grande, mas a acusação tem de ser corroborada por outros elementos de prova, que, segundo a consideração de ambos, não estão dados.
Não se nega que tenha havido relação sexual, mas a Justiça acatou o argumento da defesa do empresário e do próprio órgão acusador, segundo o qual não há evidência de que Mariana estivesse numa condição vulnerável — e, pois, impedida de reagir. Outros elementos circunstancias, e não vou entrar em minudências, levaram o representante do MP a chegar a tal conclusão. Há quem aponte que dados importantes foram ignorados nessa trajetória. Mas quero me fixar em outro ponto.
Não acho, e ninguém acha, que basta o depoimento de uma pessoa que se diz estuprada para levar o suposto autor à condenação. É claro que é preciso mais do que isso. O promotor, e o juiz concordou com ele, considera que tais elementos não estão dados. A título de fundamentação técnica, apela-se ao Artigo 20 do Código Penal. Lá está escrito:
"Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
§ 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo."
Aqui a coisa é complicada de entender. Ninguém pode justificar um crime alegando ignorância da lei (Artigo 21 do Código Penal). Excluído, no entanto, o dolo — que é a intenção de praticar a ilegalidade —, pode haver uma punição por crime culposo. E é nesse ponto que a confusão se instala: ora, justamente por inexistir estupro culposo, então não se pediu punição nenhuma para André de Camargo Aranha.
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Afirmei no programa "O É da Coisa" que o juiz não tinha como condenar o réu se o próprio órgão acusador pediu a absolvição. Os eventos são de dezembro de 2018. Desde setembro daquele ano, está em vigor a Lei 13.718, que alterou o Artigo 225 do Código Penal, que passou a ter a seguinte redação:
"Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada."
Os capítulos I e II tratam de crimes contra a liberdade sexual, exposição da intimidade sexual e crime sexual contra vulnerável. Sendo, pois, de "ação pública incondicionada", o Artigo 385 do Código de Processo Penal permite que um juiz condene o réu, ainda que o Ministério Público tenha opinião contrária. Diz o texto:
"Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada."
Ocorre, meus caros, que, no caso, o Ministério Público descartou a condição de "vulnerável" da vítima. E o juiz diz não ter visto nos autos elementos que o convencessem do contrário.
Observem que faço, até aqui, uma exposição que chamo técnica do caso. Uma mulher diz ter sido estuprada; o acusado nega o estupro; o órgão encarregado da acusação não vê provas do crime alegado, e o juiz o absolve. Nem sequer entro no mérito, embora, leiam a reportagem, existam elementos que parecem fora do lugar. Inicialmente, por exemplo, Aranha negou que conhecesse Mariana. E, como resta evidente, conheceu muito bem.
OS FANTASMAS DE ÂNGELA DINIZ E DOCA STREET
O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público resolveram apurar o caso. Que o façam. Parece-me justo e necessário. Nunca procedo como juiz. Eu sempre debato a questão quando me parece que o devido processo legal ou o estado de direito podem ter sido aviltados.
Aranha constituiu Cláudio Gastão da Rosa Filho como seu advogado. É um medalhão. Como sabem os profissionais da área, poucos jornalistas defendem tanto a categoria, como faço. Mas, por óbvio, não vou silenciar diante do que se mostra indigno.
Texto continua aqui