CRIVELLA E VERDADES INCONVENIENTES 1: Incompetência, religião e roubalheira
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Vamos a algumas considerações sobre a prisão preventiva do ora afastado prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e de algumas pessoas do seu entorno, correndo o risco — e isto não é novo — de desagradar a gregos, troianos e guerreiros sem partido, dispostos apenas a atirar.
A IGREJA UNIVERSAL
De saída, destaque-se que foram para a cadeia dois parentes de Edir Macedo, comandante máximo da Igreja Universal do Reino de Deus: o próprio Crivella, que é seu sobrinho, e Mário Macedo, primo de Edir, braço direito do prefeito e homem de confiança do próprio patriarca. Embora católico, Mário já exerceu cargo de comando, por exemplo, na Line Records, uma das empresas ligadas à Universal. Quando tem alguma desconfiança sobre a fidelidade, vamos dizer, financeira de seus subordinados, Macedo -- o Edir -- recorre a Macedo, o Mário, para a prova dos noves. O homem é uma espécie de auditor "in pectore" do empresário Edir Macedo.
É evidente que é impossível dissociar essas prisões da natureza do Republicanos, partido que tem uma singularidade: nenhum outro é braço de uma denominação religiosa. Este, com justiça, é considerado propriedade da Universal — de Macedo, portanto. Crivella é um bispo licenciado da Igreja, assim como Marcos Pereira, deputado (SP), presidente da legenda e primeiro vice-presidente da Câmara.
O ABRIGO DOS BOLSONAROS
O entorno do presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o diabo -- com o perdão da palavra em texto em que falamos de homens tão pios -- para evidenciar que ele nada tem a ver com Crivella. Bem, os fatos apontam na direção oposta. O mandatário de Brasília pode não ter relação com as acusações que pesam contra o prefeito, mas as vinculações políticas, hoje, são escancaradas.
O Republicanos serviu de abrigo aos Bolsonaros: o senador Flávio e o vereador Carlos aportaram na legenda à esteira da crise do clã com o PSL. Quando a turma de Macedo abriu os braços para o Zero Um, o dito escândalo da "rachadinha" — diminutivo simpático para designar "peculato (roubo de dinheiro público) — já estava dado em todos os seus contornos.
Logo, pode-se dizer, sem medo de errar, que alguém com a biografia de Flávio não constrange o senso de moralidade do Republicanos — e, por consequência, dos donos da legenda: a igreja e seu patriarca. O partido chegou a ter alguma dúvida se aderia ou não ao bloco formado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), que ainda escolherá um nome para disputar a Presidência da Câmara, se lançava um candidato (o próprio Pereira) ou se embarcava na nau bolsonarista, liderada por Arthur Lira (PP-AL). Bidu! Os valentes escolheram o capitão.
Até porque havia uma dívida de gratidão: o presidente abraçou a candidatura micada de Crivella à reeleição: de forma enfática no primeiro turno; com menos entusiasmo no segundo. E também esse alinhamento expõe a natureza de Crivella, do Republicanos e do mercado ideológico da fé.
INCOMPETÊNCIA ASSOMBROSA
Ainda que Crivella fizesse uma gestão honesta como os anjos, é de se notar a incompetência da gestão como variável independente. Não são assim tão raros os casos em que a roubalheira convive com a prestação de serviços, ainda que estes não primem pela excelência -- e que se note: estamos falando de crime, e criminosos têm de ser punidos.
A gestão de Crivella chega a ser estupefaciente pela inércia, pela inabilidade, pela incapacidade técnica, pela pasmaceira... E, claro!, a população pobre é quem mais padece com a ruindade. Segundo o Ministério Público do Estado, há mais do que isso: também há a roubalheira. Vale dizer: o mau-caratismo teria se juntado à deficiência técnica. Uma coisa é certa: a cidade do Rio vive os últimos dias da pior gestão da sua história.
REACIONARISMO ASQUEROSO
A principal vitrine dos Republicanos era a Prefeitura do Rio -- uma exposição, na verdade, de desastres. A eventual reeleição de Crivella era considerada essencial para tentar minimizar a memória terrificante dos primeiros quatro anos. Sem se dar conta do desgaste da imagem de Bolsonaro nas grandes cidades, o partido apelou ao presidente.
Não deu certo. Ainda que o "capitão" tenha congregado os reacionários todos no apoio a Crivella, o que se viu foi uma consolidação de rejeições solidárias. Crivella já tinha na sua biografia como prefeito o recolhimento da HQ dos Vingadores que trazia um beijo gay. A união com Bolsonaro na disputa deste ano levou a campanha para o esgoto da extrema direita. No auge da delinquência, o prefeito ora encarcerado chegou a dizer que a eventual vitória de Paes implicaria a entrega da Educação para o PSOL, que, então, levaria para as escolas a promoção da pedofilia.
Já não era uma campanha, mas um vômito. Nem o PSOL assumirá a educação. E, por óbvio, se assumisse, a acusação de pedofilia é uma estupidez criminosa.
O CARÁTER DO REPUBLICANOS
Essa inflexão delirantemente reacionária está menos para uma convicção do que para um oportunismo, o que não melhora em nada a moral da história. Até piora. Expõe o caráter de um grupo político que constituiu, por exemplo, a base de apoio ao PT quando este estava no poder.
Dilma Rousseff foi uma das estrelas da inauguração do chamado "Templo de Salomão", a faraônica sede da Universal em São Paulo, e Crivella foi seu ministro da Pesca entre 2 de março de 2012 a 17 de março de 2014. Assim que foi indicado para o cargo, resumiu a sua experiência no assunto:
"Nem sei colocar uma minhoca no anzol. Eu preciso aprender muito. Conheço um pouquinho na teoria e muito menos na prática. Vai ser mesmo um intensivão".
E como se justificava a adesão de uma estrela da Universal, com convicções genericamente conservadoras, a um governo nominalmente de esquerda? Crivella deu uma resposta que os integrantes do Republicanos dariam hoje para justificar a parceria com Bolsonaro:
"Espírito público, político, de saber como as coisas caminham, resolver as controvérsias, eu diria sossegar as vaidades e egos, isso eu tenho boa experiência".
O prefeito agora encarcerado, sob a acusação de liderar uma organização criminosa, agarrado ao que a extrema direita produziu de mais abjeto, servia a um governo de esquerda há pouco mais de seis anos.
O CARÁTER DA UNIVERSAL
Aqui é preciso pensar um tanto o pentecostalismo muito particular da Igreja Universal do Reino de Deus. Uma das precursoras no país da chamada "Teologia da Prosperidade" -- uma espécie de "aposte, com uma oferta à igreja, que Deus responderá com abundâncias" --, a denominação comandada por Edir Macedo reflete algumas heterodoxias do próprio líder.
Se, para boa parte do pentecostalismo — e do cristianismo —, o aborto, por exemplo, é uma abominação, não é essa a convicção de Macedo.
Em vídeo desaparecido do Youtube, ele fez uma espécie de palestra. E afirmou:
"Eu pergunto: 'O que é melhor? Um aborto ou uma criança mendigando, vivendo num lixão?' O que é melhor? A Bíblia fala que é melhor a pessoa não ter nascido do que ter nascido e viver o inferno. Eu sou a favor do aborto, sim. E digo isso alto e bom som, com toda a fé do meu coração. E não tenho medo nenhum de pecar. E, se estou pecando, eu cometo este pecado consciente... "Se'... Eu não acredito nisso. É uma questão de inteligência, nem de fé. Lá em Nova York, depois que foi promovida a lei sobre o aborto, a criminalidade diminuiu assustadoramente. Por quê? Porque deixou de nascer criança revoltada, a criminalidade diminuiu".
Macedo dizia estar amparado por um trecho do Eclesiastes (6,3) para defender seu ponto de vista, a saber:
"Se um homem tem cem filhos e vive muitos anos, por mais numerosos que sejam os dias de seus anos, se sua alma não se sacia de felicidade e nem sequer lhe dão uma sepultura, eu digo que um aborto é mais feliz do que ele".
É evidente que nada há aí que justifique o aborto. Ao contrário, a prática é citada como o extremo da fealdade.
O que demonstro é que as heterodoxias políticas do Republicanos/Universal são compatíveis com suas heterodoxias teológicas. O grupo político que já serviu ao petismo — e do qual o petismo se serviu — é aliado circunstancial de Bolsonaro. E nada impede que possa buscar outras alianças, produzindo, no caminho, desastres como Crivella.
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