Topo

Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Suspeição de Moro já está selada. STF vota hoje se esculhamba o próprio STF

Edson Fachin e Gilmar Mendes: o primeiro propõe uma saída exótica; o outro defende que se cumpram as regras do jogo - Reprodução
Edson Fachin e Gilmar Mendes: o primeiro propõe uma saída exótica; o outro defende que se cumpram as regras do jogo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

22/04/2021 06h54

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Vamos botar um pouco de ordem na bagunça. Ainda que, em certos nichos do colunismo e do lavajatismo, haja uma tentativa de apelar à matemática criativa, há um fato irrecorrível: a 13ª Vara Federal de Curitiba, com Sergio Moro junto, foi considerada incompetente para abrigar as causas que diziam respeito a Lula. O placar no STF foi elástico. O jurista Lenio Streck escreveu um artigo impagável no site Consultor Jurídico sobre certa ginástica mental do lavajatismo para transformar em vitória uma derrota por 8 a 3. Por que não pedir a anulação daquele vexaminoso 7 a 1 contra a Alemanha, não é mesmo? Uma amiga está convicta de que, naquele 8 de julho de 2014, cruzamos o Portal dos Desatinos. Foi feia a coisa. Mas o compromisso com o desastre havia sido firmado quatro meses antes, no dia 17 de março daquele ano, quando se instalou a força-tarefa que nos conduziria à terra dos 400 mil mortos deste abril. Hoje o tribunal se reúne de novo. E, mais uma vez, os mistificadores insistem em substituir o direito pela vontade.

Nesta quinta, o pleno do Supremo não vai julgar se Moro era ou não suspeito. Esse julgamento já aconteceu há um mês. Por 3 votos a 2, a Segunda Turma julgou um habeas corpus e considerou que o então juiz foi parcial na condução do processo do tríplex. O que o pleno vai decidir nesta quinta — e não deixa de ser exótico que o faça — é se aquele julgamento valeu ou não. Experimento certa sensação de constrangimento ao escrever isso porque, no fundo, os 11 ministros estarão votando se podem se comportar como instância revisora das turmas, o que é do balacobaco. Não podem. O tema nem deveria ser submetido a escrutínio.

COMO CHEGAMOS A ISSO?
Mas como chegamos a este momento singular da corte? Vamos ver.

Fachin declarou, no âmbito do HC 193726, a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para conduzir os quatro processos que lá corriam contra Lula e remeteu a sua decisão ao pleno. Bem, que Moro fosse um juiz incompetente, ele próprio já o havia confessado em embargos de declaração ao afirmar não haver qualquer nexo causal entre o tríplex de Guarujá — que nunca pertenceu ao petista, note-se, como atesta a Alvarez & Marsal, empresa da qual Moro, hoje, é sócio!!! — e os contratos da OAS com a Petrobras.

Os HCs, em regra, são votados nas turmas. Fachin preferiu afetar o pleno, uma prerrogativa que tem, sim, o relator. A questão é saber por que Lula costuma ser contemplado com esse expediente, mas não outros réus. Em abril de 2018, se o HC que pedia que fosse posto em liberdade tivesse sido julgado na Segunda Turma, ele teria deixado a prisão. Fachin preferiu apostar no pleno, e, por 6 a 5, o petista foi mantido na cadeia, Lá ficou por longos 580 dias. Havia sido condenado por um juiz incompetente e suspeito, num processo agora anulado. Mas voltemos ao fio.

Ao anular os processos, Fachin, sabe-se lá com base em que fundamento, resolveu declarar prejudicado um outro HC que tramitava na Segunda Turma: o de número 164493. Ocorre que este não pedia a declaração de incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, mas a suspeição de Moro, que é coisa diversa, com consequências também distintas. A incompetência deixa a critério do juiz ao qual se distribui a causa o aproveitamento ou não de provas, por exemplo. A suspeição declara nulos rigorosamente todos os atos processuais.

ABERRAÇÕES
Ora, caso se aceite que um juiz use um HC de incompetência para tornar sem efeito um HC de suspeição, dá-se a esse magistrado o poder de reescrever o conteúdo de um recurso. Moro era, sim, suspeito e incompetente. Mas se trata de coisas distintas.

O julgamento da suspeição, ademais, já havia começado, com dois votos proferidos: o do próprio Fachin e o de Cármen Lúcia. E que se note: como eu já havia escrito neste blog — e o próprio ministro lembrou em entrevista ao Estadão —, Gilmar Mendes, ora presidente da Segunda Turma, havia defendido, no passado, que esse HC da suspeição fosse levado ao pleno. Mas Fachin preferiu, nesse caso, afetar a turma. Fim de papo.

Assim, reitere-se, é um despropósito que ele pretenda que um HC que resulta na nulidade por incompetência torne sem efeito um outro que trata da suspeição. Mendes houve por bem submeter a questão à Segunda Turma e, por quatro votos a um, decidiu-se que o julgamento sobre a parcialidade de Moro deveria ter continuidade. E teve. E o então juiz foi declarado parcial por três votos a dois. Fachin houve por bem recorrer à Presidência. E, assim, o pleno chega a este exotismo: decidir se a votação havida na turma vale ou não.

POUCO IMPORTA O QUE PENSEM SOBRE A SUSPEIÇÃO
Assim, pouco importa o que pensem as ministras e ministros sobre a suspeição de Moro, esta não estará em julgamento. Decidirão duas outras coisas, uma mais escalafobética do que a outra:
a: se o pleno pode ser instância revisora das turmas;
b: se o relator tem o direito de mudar o conteúdo de um habeas corpus.

DESTINAÇÃO DOS PROCESSOS
Antes desse embate, haverá uma outra votação: se os processos que tramitavam contra Lula permanecem na Justiça Federal de Brasília, como entende Fachin, ou se rumam para São Paulo, como defende o ministro Alexandre de Moraes. Lembro e já escrevi a respeito: essa divergência aberta por Moraes não reduziu seu voto a uma simples questão de competência regional -- de "nulidade relativa", como tentou fazer parecer Luiz Fux. Em sua argumentação, deixou claro que o direito ao juiz natural, o que Moro não era, é uma garantia constitucional e um dos fundamentos do estado de direito.

A QUESTÃO DO PROMOTOR NATURAL
Entendo, por óbvio, que a suspeição de Moro não se limita à questão do tríplex: afinal, ele não foi parcial nesse caso porque tivesse alguma implicância com o imóvel. A parcialidade se dá na sua relação com a pessoa do acusado e, por estúpido que pareça, até com seus advogados, que foram grampeados.

Minhas caras, meus caros, o Inciso LIII do Artigo 5º, cláusula pétrea da Constituição, é claro:
"LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente".

Estão aí implícitos dois princípios: o do juiz natural e o do promotor natural, como lembram o já citado Lênio e Marco Aurélio de Carvalho em outro artigo publicado no Conjur.

Além de suspeito, Moro não era o juiz da causa porque, para a 13ª Vara Federal de Curitiba, rumavam os inquéritos que tinham relação com um núcleo de investigação surgido na Petrobras. Cabe indagar: eram os procuradores da Lava Jato de Curitiba os promotores naturais das investigações que diziam respeito a Lula? A resposta, obviamente, é não. E tudo o que ali se produziu é imprestável. Sim, o Ministério Público acusa e, nesse sentido, ele é uma parte. Mas tem a obrigação de ser imparcial diante dos fatos. Afinal, cabe-lhe pedir, por exemplo, o arquivamento de uma investigação.

Alguém ousaria sustentar a imparcialidade dos procuradores diante de Lula? Alguns deles conseguiram fazer ironias pavorosas sobre a morte de sua mulher, de um seu irmão e de um neto — uma criança de sete anos. Não eram os promotores naturais. Não aturam com a devida isenção profissional. E empreenderam uma caçada.

Leiam a Parte 3 das reportagens sobre a Vaza Jato publicadas pelo site The Intercept Brasil. Ali está explicada a ginástica mental a que recorreram Deltan Dallagnol e seus rapazes, sob a supervisão de Moro, para levar para Curitiba a questão do tríplex do Guarujá. E o mesmo se fez com o sítio e todo o resto.

Não se resgata o devido processo legal pela metade. Há de ser por inteiro.