Reinaldo Azevedo

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Opinião

Emendas: Democracia foi corroída por oligocratas, pornocratas e timocratas

vou eu furar mais uma vez as minhas férias, conforme o prometido... O ministro Flávio Dino, do STF, provocado por uma petição do PSOL, submeteu a sem-vergonhice das emendas à luz do sol.

Dino já produziu três, a esta altura, "documentos históricos" sobre a questão: a decisão de 14 de agosto, quando suspendeu pela primeira vez a execução das emendas; a de 2 de dezembro, quando liberou o pagamento sob algumas condições, e a de 23 de dezembro, quando voltou a suspendê-lo.

Os textos, se lidos, são de uma clareza irreplicável. Ocorre que vivemos tempos em que o flagrante delito, nessa matéria, virou uma categoria de pensamento. Até alguns editoriais andam a se solidarizar com a velhacaria sob o pretexto de que o Supremo estaria a invadir a competência de outro Poder.

A propósito: quais são os artigos da Constituição que garantem ao Legislativo — ou àqueles que, de acordo com as regras, falam em seu nome — a competência para ignorar o que estabelece a própria Carta?

CORROSÃO DA DEMOCRACIA
A resposta é conhecida: inexistem tais disposições, e todos fomos, de algum modo, "nos acanalhando" (por Graciliano Ramos) diante dos desmandos de um novo regime, fundado nestas plagas, que junta oligocracia (a elite às avessas, composta pela seleção dos piores), pornocracia (a cortesania dos beneficiários do cambalacho) e etocracia (assim mesmo, não errei a grafia): o próprio grupo funda as bases de um modelo em favor adivinhem de quem...

Repararam a quantos termos recorri, todos eles fora do vocabulário usual da cobertura política? Corroeram a democracia se aproveitando também de nossa anemia vocabular. Num dos países mais desiguais da terra, triunfa a timocracia, que é o governo dos ricos. Nota à margem: observem como foi tratada no noticiário desta sexta a mais baixa taxa de desemprego da série histórica: mais um sinal dos erros do governo Lula, dizem oligocratas, pornocratas, etocratas e timocratas. Daí o esforço para depô-lo já, se possível, ou inviabilizá-lo para 2026. Sigamos.

Dino resolveu apelar, digamos, ao gênero interrogativo-didático — isso já rendeu uma dose de cicuta em passado remoto — para tentar obter da Câmara uma resposta. O ministro quis saber:

1: quando as emendas foram aprovadas pelas comissões?:
2: houve indicações adicionais incluídas na lista após as reuniões das comissões temáticas da Câmara? Se sim, quem fez essas indicações e quem as aprovou?;
3: de que forma a resolução de 2006 do Congresso Nacional que disciplina a Comissão Mista de Orçamento (CMO) prevê o rito dessas emendas?;
4: se não estiverem nessa resolução, onde estão as regras usadas pelo Congresso para aprovar essas emendas?

Deu até as 20h desta sexta para a Câmara responder. Resposta não houve. Ou melhor: depois de Lira fazer uma reunião extraordinária com os líderes, um documento de 22 páginas foi enviado ao ministro. Não responde às indagações feitas pelo magistrado. Informa o UOL:
"O advogado da Câmara diz ainda que não há 'tentativa de descumprimento' de decisão do Tribunal. "A Câmara dos Deputados tem agido de maneira cooperativa e de boa-fé, em sincero diálogo institucional com os Poderes Executivo e Judiciário para aprimorar o processo de elaboração e execução orçamentária de maneira transparente e eficiente".

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A íntegra da resposta está aqui.

Informa a Folha:
"O presidente da Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional da Câmara dos Deputados, José Rocha (União Brasil-BA), disse à Folha nesta sexta-feira (27) que emendas parlamentares de seu colegiado não foram deliberadas pelos deputados do grupo e que não existem atas de aprovação destas indicações. O parlamentar, que foi convocado pela PF (Polícia Federal) para falar no inquérito que investiga o tema, afirmou que o chefe da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), deu informações que 'não procedem e não são verdadeiras' ao STF sobre tais deliberações. 'Ele (Lira) não enviou para a comissão aquilo que o próprio ministro (Flávio Dino, do STF) passou a solicitar, que a Câmara mandasse os autores das indicações e os objetos das emendas', afirmou."

Os oligocratas têm suas patranhas. Convém observar que a Câmara não recorreu da mais recente decisão de Dino. Ora, se tudo foi feito de acordo com a lei e se as indagações feitas pelo ministro têm resposta convincente, recorra-se. Se a decisão monocrática não agradar, apele-se no recesso ao presidente do tribunal. Mas essa elite às avessas não quer uma nova negativa no tribunal. Prefere tentar algum caminho alternativo, uma acochambrada com o relator, quem sabe...

COLAPSO
Criou-se um regime impossível no Brasil -- o "sequestrismo" -- que chegou ao colapso tão logo alguém lembrou que o país tem uma Constituição. Walfrido Warde e Rafael Valim, os advogados que recorreram ao Judiciário em nome do PSOL, apelaram a uma tática verdadeiramente revolucionária nos dias de hoje: pleitearam que as emendas sejam submetidas ao regime constitucional, uma vez que nada pode haver além fora dele e contra ele.

Não sei se o ministro vai se contentar com as respostas que não foram dadas. O que sei é que pôr fim à indústria do crime em que se transformaram as emendas deveria ser uma das prioridades dos valentes varões de Plutarco, que, em tese ao menos, estão preocupados com a evolução da dívida pública por razões republicanas, como se o calote fosse uma hipótese plausível... Coisa de gente vil. Quem dera exercessem a mesma pressão em favor da destinação honrada dos mais de R$ 50 bilhões em emendas, que hoje alimenta esquemas criminosos e garantem as posições de oligocratas, pornocratas, etocratas e timocratas.

Mas não... Poucas vozes são tão obsequiosas com os tais "mercáduz", comportando-se, muitas vezes, como um de seus ordenanças, como Arthur Lira. Esse regime singular que se inventou no Brasil, sob a guarda de centrão, extrema-direita e reacionários variados, deixa-se conduzir, pelo nariz, sem resistência, por velhacos e especuladores. Essa gente, se puder, derruba Lula e entroniza os Liras da vida para que a pobrada brasileira saiba distinguir, sem reclamar, os cavalcantes dos cavalgados.
*

Volto às minhas férias. Até interrompê-las outra vez.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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