Reinaldo Azevedo

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Opinião

Emenda e farra do bode: entenda sentido legal e profundo da decisão de Dino

Pois é... Preparados para um texto muito longo na véspera do foguetório? Achei importante interromper o descanso. Já que o fiz, que não seja por pouco. Vamos lá.

O ministro Flávio Dino, do Supremo, em decisão de vários modos impecável (íntegra aqui), liberou parte das emendas bloqueadas por ele mesmo. Arregou? Continua a se meter na esfera de competência de outro Poder? Nem uma coisa nem outra. Já chego lá. Esta segunda traz uma nova peça de natureza tragicômica ao debate, destacando: é trágica porque expressa o calamitoso e o sinistro no que respeita à coisa pública; é cômica porque pode provocar o riso sardônico, nem que seja de desespero. Procurem a origem da palavra "tragédia" e constatarão que vivemos não o canto, mas a farra do bode. Vamos ver.

Na decisão de 23 de dezembro, quando voltou a bloquear a execução de emendas atendendo a nova petição do PSOL, Dino encaminhou algumas perguntas à Câmara, a saber:
1: quando as emendas [de Comissão] foram aprovadas pelas comissões?:
2: houve indicações adicionais incluídas na lista após as reuniões das comissões temáticas da Câmara? Se sim, quem fez essas indicações e quem as aprovou?;
3: de que forma a resolução de 2006 do Congresso Nacional que disciplina a Comissão Mista de Orçamento (CMO) prevê o rito dessas emendas?;
4: se não estiverem nessa resolução, onde estão as regras usadas pelo Congresso para aprovar essas emendas?

A Câmara não respondeu a nenhuma das questões, embora dissesse fazê-lo. Nesse caso, a tragédia e a comédia mergulham no teatro do absurdo. Na decisão de ontem (29 de dezembro), em que libera parte das emendas, o ministro endereçou, na página 10, uma questão ao Senado, a saber:
"De todo modo, sem prejuízo do efeito imediato dessa decisão, em homenagem ao princípio do contraditório, fixo o prazo de 10 (dez) dias úteis, conforme o CPC [Código de Processo Civil], para que o Senado se manifeste sobre as alegações da Câmara."

O comando do Senado nem precisou de tanto tempo. Bastou um dia para dizer a verdade. Em mensagem enviada nesta segunda, hoje mesmo, ao ministro, reconheceu que as emendas de comissão não foram aprovadas pelos órgãos temáticos da Casa — logo, digo eu, o encaminhamento foi escancaradamente ilegal. Admite, na prática, que a resposta da Câmara é mentirosa. Ainda assim, o Senado pede a liberação da grana, prometendo resolver tudo em fevereiro. O ministro recusou o pedido.

A DECISÃO DE DINO
O ministro liberou a execução de parte das emendas, segundo esses crivos:
- executem-se as emendas de comissão empenhadas até 23 de dezembro (leia justificativa abaixo);
- os recursos oriundos de emendas depositados dos Fundos de Saúde podem ser movimentados até 10 de janeiro; a partir do dia 11, têm de ser depositadas em contas específicas;
- fica autorizado o empenho imediato, até 31 de dezembro, das emendas impositivas para a Saúde, independentemente da existência das contas específicas.

Ao justificar a liberação condicionada das emendas de comissão, o ministro escreveu:
"quanto aos empenhos de 'emendas de comissão' realizados ANTES da suspensão dos efeitos do Ofício nº. 1.4335.458/2024, a fim de evitar insegurança jurídica para terceiros (entes da Federação, empresas, trabalhadores), fica excepcionalmente admitida a continuidade da execução do que já foi empenhado como 'emenda de comissão' até o dia 23 de dezembro de 2024, salvo outra ilegalidade identificada em cada caso concreto."

A rigor, aí está o fio condutor da decisão de Dino, e isso não caracteriza arrego. Veremos adiante que o ministro reafirma a escancarada ilegalidade do cambalacho liderado por Arthur Lira e seus líderes amestrados para a liberação de um pacote de emendas de comissão que soma R$ 4,2 bilhões, ao arrepio das determinações legais e constitucionais.

E por que o ministro, então, não bateu o porrete na mesa e disse: "Não libero e pronto"? Porque reconhece, como se lê no trecho acima, em vermelho, que há outros atores envolvidos. E, sim, juízes têm o dever de harmonizar a aplicação da lei com as consequências sociais de sua decisão, o que nem sempre é bem compreendido, note-se, nem ou principalmente pela imprensa.

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O ESPÍRITO DO TEMPO
Uma das vantagens, são poucas, de ser um tanto antigo é poder apelar a um repertório que pode estar ausente do radar dos mais jovens. No dia 17 de janeiro de 2001, o filósofo José Arthur Giannotti, que morreu em 2021, aos 91 anos brilhantemente vividos, escreveu na Folha um artigo intitulado "O dedo em riste do jornalismo moral" -- lido, então, pelo avesso por alguns adversários intelectuais que tinha. Numa passagem simples e eloquente, escreve, citando um dos pensadores de sua predileção:
"Lembrando uma imagem usada por Wittgenstein: se o êmbolo fosse rigorosamente ajustado ao oco do pistão, não haveria movimento possível. (...) Sabe-se o preço a ser pago pela tentativa de abolir essa zona de indefinição, ela resulta na ditadura ou no jacobinismo. Ser democrático é, pois, conviver com esse risco."

Sim, é verdade: o Supremo tem hoje uma presença no debate público que é inédita, seja contendo os apetites dos outros Dois Poderes, seja promovendo tentativas de conciliação. A democracia está em crise no mundo inteiro — onde há democracia, é claro!, se me permitem uma obviedade. É ínsito ao modelo que o Judiciário tem, para apelar a uma ironia esperta, o poder de errar por último. Se refletirem um minutinho sobre a frase, entenderão que às outras duas esferas foi dada a chance de acertar, o que não aconteceu, razão por que os togados foram escalados. E só por isso se apelou, para lembrar frase famosa, aos "juízes de Berlim".

Esse papel mais saliente do tribunal tem alguns marcos no Brasil contemporâneo:
1 - a contenção dos descalabros perpetrados pela Lava Jato;
2 - a necropolítica empreendida por Jair Bolsonaro durante a pandemia;
3 - o enfrentamento da articulação golpista conduzida pelo ex-presidente e seus soldados aloprados de pijama.

Nota fundamental: a ascensão do Ogro, fruto ela mesma da razia política provocada pelo lava-jatismo, despertou os demônios da extrema-direita no país, que fagocitaram a direita democrática, destruindo-a, e desenterrando das catacumbas da incivilidade uma agenda reacionária e destruidora de direitos fundamentais, que afronta, em muitos aspectos, a essência e a ossatura da Constituição de 1988. Dado esse paradigma de morbidade, ganhou musculatura a tese de que o mal do Brasil não está na distribuição desigual de direitos e de deveres ou na captura, por grupos de pressão, de recursos públicos em seu próprio proveito. Para os reacionários, o mal do Brasil está na existência de um excesso de privilégios aos mais pobres. A tese é asquerosa, mas é o que pensam "os bacanas". Exemplo? Aumento real de salário mínimo vira sortilégio; já a desoneração da folha de salários vira recurso para manter empregos...

Este Supremo "que aparece demais" não está a socorrer este ou aquele governantes; esta ou aquela visões de mundo; este ou aquele entendimentos sobre a distribuição de renda. O Tribunal, em regra, aplica os valores consagrados pela Constituição e que não podem ser mudados nem por emenda, senão por um novo processo constituinte — tese que, diga-se, tem sido vocalizada por correntes dispostas a eternizar, num novo texto constitucional, seus privilégios, o que necessariamente cassaria direitos de uma maioria já espoliada.

É mentira que o Supremo socorra um governo progressista. O que o tribunal, não raro, tem impedido é a privatização da interpretação da Constituição com o fito de cassar direitos fundamentais. Adiante.

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É ILEGAL E PRONTO. OU: DECISÃO MODULADA
Ao liberar parte das emendas, o ministro impediu o travamento do êmbolo de que fala Giannotti, em desserviço, como deixou claro, de outros atores, mas evidenciou, sem qualquer área cinzenta que permita interpretações alternativas, que o Orçamento não é matéria privada de um Poder ou, dentro deste, de alguns grupos de pressão. E, ao fazê-lo, uma vez acionado por um partido político, segundo as regras do jogo, exerce as competências ínsitas à sua razão de ser.

Na decisão, o ministro reitera a absoluta ilegalidade da lambança feita com as emendas de comissão, o que deixa claro que não há espaço para a continuidade das práticas viciosas:
"Em decorrência dos fatos expostos, fica evidente a nulidade insanável que marca o Ofício nº. 1.4335.458/2024. Os seus motivos determinantes são falsos, o caráter nacional das indicações das emendas - exigido pela Resolução nº. 001/2006, do Congresso Nacional -- não foi aferido pela instância competente (as Comissões) e o procedimento adotado não atende às normas de regência, notadamente a Constituição Federal, a Lei Complementar nº. 210/2024 e a referida Resolução nº. 001/2006, do Congresso Nacional. Por conseguinte, é inviável a sua acolhida e seguimento, de modo que ao Poder Executivo fica definitivamente vedado empenhar o que ali consta."

Na sequência da decisão que chamei de impecável, o ministro alerta, sim, para nulidades passadas, mas lembra, mais uma vez, as consequências deletérias caso assim decidisse (e um juiz precisa pensar nas consequências de sua decisão):
"Verifico que o procedimento anômalo para indicações de 'emendas de comissão' foi adotado em outros momentos da execução orçamentária de 2024, e aparentemente em 2023. Assim, poderia haver a declaração de NULIDADE de TODAS as 'emendas de comissão' com os vícios acima apontados. Entretanto, observo as consequências desta decisão (art. 20, caput, da LINDB), e, com este fundamento, tenho por configurada hipótese que justifica o afastamento parcial e excepcional da incidência das normas aludidas nesta decisão."

Dino não está inovando nem tentando pôr em pé um ovo de Colombo. Cita o Artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), cujo conteúdo é este:
"Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas."

Quando um juiz pensa nos desdobramentos de seus despachos, não está relativizando a norma, mas seguindo-a. E, claro!, para que se constate tal evidência, é preciso... conhecer a norma.

INVESTIGAÇÃO
O ministro reitera que estão dados os motivos para a apuração das práticas ilegais em inquérito instaurado pela Polícia Federal:
"Essas teratologias retratadas -- e outras -- terão o seu itinerário de consumação e os seus motivos devidamente apurados pela Polícia Federal, no Inquérito já instaurado. Sublinho que não se descarta que se cuide meramente de interpretações defeituosas, de erros administrativos ou de imposições políticas sobre qualificados e respeitáveis assessores da Câmara. Mas também pode haver outras tipificações, sobre as quais qualquer juízo de valor -- neste momento processual -- seria prematuro e incabível. Friso, a propósito, que a requisição do Inquérito Policial -- cuja necessidade torna-se a cada dia mais nítida -- derivou de documentos constantes dos autos, oriundos de partidos políticos, entidades da sociedade civil e de pronunciamentos de parlamentares (na Câmara e no Senado), caracterizando a hipótese do art. 5º, II, do Código de Processo Penal."

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Em síntese, o prejulgamento é descabido, mas os fatos não foram cavoucados pelo STF de moto próprio; chegaram ao tribunal pelas mãos de entes competentes para fazê-lo.

SEM INTIMIDAÇÃO
Dino lembra em sua decisão que o STF cumpre o papel que lhe delega a Constituição e repudia a intimidação:
"Recordo que -- por deliberação da Assembleia Nacional Constituinte - nem mesmo o máximo poder do Congresso Nacional -- o de aprovar emendas constitucionais - é incondicional e imune ao controle jurisdicional. Por isso, mais do que inúteis ameaças ou consumação de 'retaliações', o diálogo institucional sincero e o cumprimento das normas jurídicas são as trilhas corretas a serem percorridas em favor dos legítimos interesses da Nação".

E o ministro encerra:
"O Orçamento, por ser uma lei, é aprovado pelo Poder Legislativo e, de regra, executado pelo Poder Executivo, salvo quanto ao mencionado no art. 168 da Constituição Federal. Havendo respeito à saudável repartição de competências, o princípio da separação de poderes (cláusula pétrea) terá sua eficácia respeitada, com a convivência harmônica entre os departamentos autônomos que concretizam a Soberania Popular."

Vale dizer: cumpra o Congresso o que está na Constituição e na legislação infraconstitucional no que respeita às emendas, e tudo caminhará bem. Indague-se como mero arremate retórico: é o que tem acontecido?

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
Noto, a propósito, que me alinho com uma das reivindicações da petição inicial do PSOL, assinada pelos advogados Walfrido Warde, Rafael Valim e Pedro Serrano: a simples existência de emendas impositivas é uma afronta à Constituição porque se trata de uma óbvia usurpação, praticada pelo Poder Legislativo, de uma competência do Poder Executivo.

Saibam: nem os regimes parlamentaristas confundem as duas esferas do Poder. Nesse caso, com efeito, a governança cabe ao Parlamento, mas os membros das Casas Legislativas exercem a sua vontade definindo o Orçamento, como acontece no Presidencialismo, mas não são eles a determinar que ente, grupo ou setor receberão os recursos. Decidem, isto sim, o volume de dinheiro público que será alocado para esta ou aquelas áreas, mas não têm a chave do cofre.

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Dadas as peças históricas que o ministro Dino tem produzido a respeito, talvez também seja esse seu entendimento. O fato é que ele recusou a tese da inconstitucionalidade, quem sabe, mais uma vez, de olho do Artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Destaco de novo o que lá vai:
"Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas."

É só uma hipótese, não me cabe fazer exercício de adivinhação sobre os motivos do ministro que não estão explicitados em sua decisão.

ENCERRO
Consequências incontestes, decorrentes da decisão do PSOL de apelar ao Supremo e de o tribunal ter deixado claro que exerce o seu papel ao pôr em prática as prescrições e os valores da Constituição:
1: cessa o absolutismo do Congresso no que respeita às emendas;
2: os senhores parlamentares mantêm a prerrogativa -- que considero usurpação -- de interferir na execução do Orçamento, mas sob regras de transparência;
3: a transparência na destinação de recursos, reitera-se, é uma imposição, ficando sujeitos os transgressores à investigação policial.

Há mais a fazer, e aí cabe à sociedade e aos que a representam por intermédio de seus mais variados entes se mobilizar para reavivar uma das postulações da petição inicial do PSOL: a existência de emendas impositivas é uma excrescência que tem, desde sempre, duas consequências nefastas:
1 - desorganizam o pacto republicano, alimentando grupos de interesses que corroem os valores democráticos;
2 - servem à constituição de verdadeiras máfias e organizações criminosas, que se apropriam do bem público em
benefício de oligocratas, pornocratas, etocratas e timocratas.

Enfrentar essa gente é tarefa civilizatória também nossa — especialmente da imprensa independente —, não apenas de Dino e do Supremo.

*
Um excelente 2025 a todos. Volto às minhas férias. Até interrompê-las outra vez.

Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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