Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Silveira, o réu, e o que presta e não presta na Lei de Segurança Nacional
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O Supremo Tribunal Federal fez a coisa certa e, por 11 votos a zero, aceitou denúncia oferecida pela Procuradoria Geral da República contra o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). A ele são imputados os seguintes crimes:
- Artigo 344 do Código Penal
"Usar de violência ou grave ameaça, com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, contra autoridade, parte, ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial (...)". Reclusão de um a quatro anos". Segundo a denúncia, isso se deu em três ocasiões;
- Artigo 18 da Lei 7.170 (Lei de Segurança Nacional)
"Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados". Reclusão, de 2 a 6 anos. Nesse caso, são duas ocorrências;
- Inciso II do Artigo 23 da Lei 7.170
"Incitar a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições". Reclusão de um a quatro anos. Nesse caso, uma vez.
Se condenado — e me parece provável que seja —, dificilmente o valentão escapará do regime inicial fechado, além de se tornar inelegível (Inciso III do Artigo 15 da Constituição) e de perder o mandato (Incisos IV e VI do Artigo 57).
Quanto tempo dura a inelegibilidade? O Inciso III do Artigo 15 diz: "Enquanto durarem seus [da condenação] efeitos" — vale dizer: o tempo da sentença. E ainda há uma controvérsia envolvendo a Lei da Ficha Limpa, mas não entro nela agora.
Por 10 votos a 1 — com voto divergente de Marco Aurélio —, foram mantidas as medidas cautelares em curso: prisão domiciliar, monitoramento eletrônico, proibição de contato com outros investigados e de postagem nas redes sociais. Silveira, no entanto, poderá participar das sessões virtuais da Câmara.
Como se nota, no caso de alguns crimes, há mais de uma imputação. O deputado era investigado em dois inquéritos: o 4.781, aberto pelo próprio Supremo, que apura agressões ao tribunal, e o 4.828, instaurado a pedido da PGR, que investiga os atos antidemocráticos.
A POLÊMICA SOBRE A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
Há indignação na extrema direita e certo clima de constrangimento entre as esquerdas em razão do emprego da Lei de Segurança Nacional. No primeiro caso, não passa de hipocrisia; no segundo, é só um sestro antigo que se vê na obrigação de repudiar "uma lei da ditadura".
Pouco tenho a dizer aos primeiros porque pouco podem compreender. Quem defende golpe de estado não tem de se zangar quando um do seus é garfado pela Lei de Segurança Nacional, amplamente acionada por André Mendonça, quando ministro da Justiça, para perseguir jornalistas e opositores. Quanto às esquerdas eventualmente constrangidas, vamos a algumas considerações.
Se leis aprovadas durante ditaduras são inaceitáveis na sua inteireza, então temos de jogar fora o Código Penal e o Código de Processo Penal, ambos oriundos do Estado Novo. Ou aquilo era democracia? Temos de jogar fora, isto sim, leis ou trechos delas que servem a regimes autoritários, pouco importa a data em que vieram à luz.
Sabem quem recorreu ao STF com uma ADPF arguindo a inconstitucionalidade da lei na sua inteireza? O PTB de Roberto Jefferson. Vale dizer: a extrema direita agora descobriu que a LSN é sua inimiga porque pode criar constrangimentos para que saiam por aí a pregar golpe, ameaçando os Poderes da República.
O RECURSO DO PSB
O PSB foi mais sensato. Também apelou a uma ADPF. Nesse caso, pede que sejam declarados inconstitucionais aspectos que, com efeito, violam escancaradamente a Constituição -- alguns nem mais se praticam porque colidem tão frontalmente com a ordem legal que é impossível aplicá-los. É o caso, por exemplo, da prisão por 15 dias no curso da investigação (Art. 32). Ou da competência da Justiça Militar para processar e julgar (Art. 31).
O partido também aponta a óbvia inconstitucionalidade do Artigo 26, que é o predileto de André Mendonça, a saber:
"Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos."
Evidentemente, não se trata de um assunto de segurança nacional, mas de eventuais crimes contra a honra, de que o Código Penal já da conta. Mas, claro, autoritários como Mendonça viram aí a chance de acariciar as pantufas do rei.
Em outros casos, não vou me estender — a ADPF do PSB está aqui —, o partido pede uma interpretação conforme a Constituição. Vale dizer: que o tribunal dê uma interpretação restritiva ao que na lei se manifesta como pau para toda obra.
Concordo com quase todas as restrições feitas pelo PSB. Avalio que o partido erra, por exemplo, ao pedir a não-recepção do Artigo 23 — um dos crimes cometidos por Silveira (Inciso II): "Incitar a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições". Uma das formas mais antigas de ser do golpismo é justamente o trabalho das vivandeiras, como diria Castello Branco, que gostam de "ir aos bivaques bulir com os granadeiros".
JOGAR A LEI FORA É IMPRUDENTE
Não! Não dá para jogar a LSN fora sem que se tenha uma Lei de Defesa do Estado Democrático. Há propostas no Congresso. A mais avançada tem como relatora a deputada Margarete Coelho (Progressistas-PI) e recupera um texto de 2002 do ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. (íntegra aqui).
As aberrações da LSN desaparecem, é verdade, e se mantém o essencial em defesa do estado democrático e de direito.
É preciso, porém, tomar cuidado. O risco não está na largada, mas na chegada.
A Lei de Segurança Nacional que existe hoje carrega suas óbvias inconstitucionalidades, e o STF está aí para, se necessário, escoimar o que não foi recepcionado pela Constituição. O perigo está nos cavalos de Troia que podem ser introduzidos no projeto de lei.
Mais: sempre existe um Jair Bolsonaro com poder de veto — ainda que este possa ser derrubado. Mas dá trabalho. Há uma extrema direita ativa no país que hoje aposta no vale-tudo.
Daniel Silveira, um prosélito da ditadura e do AI-5, que claramente ameaçou o Supremo e incitou os militares contra um Poder constituído, está em prisão domiciliar e se tornou réu segundo termos da Lei de Segurança Nacional que têm de ser preservados — ainda que migrando para o Código Penal em razão de uma nova lei.
Nota: incitar a animosidade entre as Forças Armadas e entre estas e as instituições tem de continuar a ser crime. O tipo não está claramente expresso no projeto de lei que está em debate. Reitero: essa é hoje a expressão mais frequente do golpismo.