Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Decisão de Leite é corajosa e torna o Brasil melhor num tempo de trevas
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
O Brasil tem agora o primeiro governador de Estado assumidamente gay. Em entrevista ao programa "Conversa com Bial", que foi ao ar no começo desta madrugada, Eduardo Leite, que governa o Rio Grande do Sul, afirmou:
"Eu sou gay. E sou um governador gay, e não um gay governador, tanto quanto Obama, nos EUA, não foi um negro presidente. Foi um presidente negro. E tenho orgulho disso".
Não se trata de uma surpresa nos meios políticos. Também a imprensa que cobre a área sabe disso há muito tempo, o que em nada diminui a coragem de Leite. Até porque a exposição inequívoca de sua orientação sexual se dá num momento particularmente trevoso do Brasil também nas áreas dos costumes e da diversidade.
Se a homofobia não chega a ser política de Estado, ela é abertamente promovida pelo presidente da República e suas milícias digitais. O próprio governador, diga-se, já foi alvo de Bolsonaro quando este se referiu de maneira estúpida e grosseira a recursos federais enviados ao Rio Grande do Sul. No Ministério da Educação e no da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, promove-se uma verdadeira guerra à chamada "Ideologia de Gênero", que não existe. Trata-se de uma invencionice reacionária para disfarçar a homofobia, a misoginia e outras formas de discriminação.
Que o governador do Rio Grande do Sul — que postula a condição de candidato à Presidência da República — tenha decidido tornar pública a sua orientação, para que ela deixe de ser objeto de mexericos e de baixarias, eis, vamos convir, uma atitude digna de todos os aplausos. "Ah, mas aplauso por quê? A normalização não supõe justamente que essa deixe de ser considerada uma cláusula de exclusão na eleição ou em qualquer outro ambiente?"
Pois é. Assim deveria ser. Assim deve ser. Tenho a esperança de que ainda chegaremos lá. Mas assim não é. Se Leite vai colher aprovação, assentimento e entusiasmo com a sua decisão, é evidente que não faltarão também manifestações das hostes do ódio.
Há um outro aspecto bastante relevante em ser ele quem é — e agora eu me refiro a seu perfil político. O governador do Rio Grande do Sul está mais identificado com teses liberais e ditas "conservadoras" em economia. As manifestações identitárias, inclusive as de identidade sexual, estão muito associadas à militância de esquerda, ainda que as experiências socialistas não tenham sido nada lhanas e inclusivas em matéria de homossexualidade. Muito pelo contrário. Houve mais preconceito e discriminação do que aceitação.
Hoje, no entanto, quem costuma levantar as bandeiras contra a discriminação em razão da orientação sexual são políticos de esquerda, homossexuais ou não. Ainda que a trajetória de Leite não seja marcada por essa pauta, é evidente que a admissão que faz contribui para diminuir preconceito e estimula que outros, a exemplo dele, façam o mesmo. Quanto mais as pessoas puderem ser o que são, sem medo de sofrer retaliação ou preconceito por isso, melhor.
Isso não quer dizer que ele vá ser um "político LGBTQIA+". E nada impede que possa até discordar de uma postulação ou outra das franjas mais militantes. Aliás, o verdadeiro fim da discriminação implica que se reconheça que ninguém é obrigado a pensar isso ou aquilo porque é gay. Estamos falando de liberdade, não de uma camisa de força.
As pessoas LGBTQIA+ podem ser de esquerda, de centro, de direita, palmeirenses, corintianas, flamenguistas, boas, más... São, enfim, pessoas! Haver esse reconhecimento não implica ignorar as discriminações óbvias que existem, especialmente nos casos em que essa ou aquela características identificam um perfil que não se confunde com a maioria. Sim, a luta é necessária. Trata-se, obviamente, de uma questão também política. Ou o presidente da República não faria discursos homofóbicos para assanhar as suas milícias digitais.
Quando fazíamos entrevistas no ClubHouse, eu e Leandro Demori falamos com Leite. Tangenciamos essa questão pelo viés da política. Entendo que ele foi, então, bastante claro a respeito, ainda que não tenha dito, como fez agora, "sou gay".
Expressamos, então, o que nos parecia uma contradição sua: a declaração de voto em Jair Bolsonaro na eleição de 2018. Indagamos se o dito "Mito" já não havia expressado com clareza seus pensamentos repugnantes. Embora Leite tenha colocado aquela escolha na perspectiva de então, admitiu ter sido um erro que não repetiria.
Eis aí. Todo mundo aprende e precisa aprender.
A decisão que o governador toma agora torna o Brasil melhor. Nos cargos políticos que vier a disputar, não se trata de votar nele "porque é gay" — embora, para muitos, isso possa parecer um ato de resistência. E nada tenho a opor.
Mas teremos vencido mesmo a batalha quando ninguém mais deixar de votar em A ou B em razão de sua orientação sexual.
Aí, nesse particular, seremos, de fato, livres.