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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Moraes e Rosa têm de dar aula de direito penal à PGR nível "Massinha I"

Alexandre de Moraes e Rosa Weber: em suas respectivas decisões, ministros vão ao "é da coisa". Entre as atribuições da PGR, não está impedir investigações - Reprodução/STF
Alexandre de Moraes e Rosa Weber: em suas respectivas decisões, ministros vão ao "é da coisa". Entre as atribuições da PGR, não está impedir investigações Imagem: Reprodução/STF

Colunista do UOL

02/07/2021 07h34

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Ainda há juízes em Berlim. E também em Brasília.

O governo sofreu ontem dois reveses importantes no Supremo, ainda que a vontade do Planalto se manifestasse, infelizmente, por intermédio da Procuradoria Geral da República — que, por óbvio, dentro das suas funções, deveria falar apenas em defesa da lei e do Estado de direito.

O ministro Alexandre de Moraes acolheu, sim, a absurda manifestação da Procuradoria Geral da República e arquivou o chamado inquérito dos atos antidemocráticos. Mas, consoante com o que dispõem a lei e a jurisprudência do Supremo, abriu um outro para apurar a eventual existência de uma organização criminosa que atua contra a ordem democrática.

Rosa Weber, por sua vez, driblou o "drible da vaca" que a PGR tentou aplicar e indeferiu pedido para avaliar só depois do término da CPI a abertura de inquérito contra Jair Bolsonaro, conforme notícia crime apresentada pelos senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO). O objetivo é apurar eventual prevaricação do presidente ao não tomar providências para investigar prática de corrupção no Ministério da Saúde, conforme relato que lhe foi feito pelo deputado Luís Miranda e por seu irmão, Luís Ricardo Miranda, funcionário do Ministério da Saúde.

ALEXANDRE DE MORAES
Como é sabido, a pedido da própria PGR, instaurou-se em abril de 2020 o inquérito 4.828 para investigar os chamados atos antidemocráticos.

Em dezembro do ano passado, a PF apresentou o seu relatório com coisas que são do arco da velha, evidenciando que parlamentares e militantes bolsonaristas, alguns muito próximos de Bolsonaro, conspiravam abertamente contra as instituições. Para ler a íntegra da decisão do ministro, clique aqui.

Caso o façam, prestem especial atenção ao volume de dinheiro que páginas ligadas ao bolsonarismo movimentam. A vinculação da militância com parlamentares resta clara e evidente. Mesmo assim, a PGR pediu o arquivamento. Como o órgão é o titular da ação penal, assim se fez.

Mas aí coube a Moraes lembrar o que dizem a lei e a jurisprudência:
"Anoto, entretanto, que o sistema acusatório adotado em 1988, ao conceder ao Ministério Público a privatividade da ação penal pública, porém, como reconhecido por esta SUPREMA CORTE, não a estendeu às investigações penais, mantendo, em regra, a presidência dos inquéritos policiais junto aos delegados de Polícia Judiciária; autorizando, ainda e excepcionalmente, outras hipóteses de investigações pré-processuais previstas na legislação".

E ainda:
"Verifica-se, assim, que à luz do sistema jurídico-normativo brasileiro, não se confunde a fase pré-processual (investigativa) com a titularidade da ação penal pública, cuja promoção, nos termos constitucionais, é privativa do Ministério Público, que, como dominus litis, deve formar sua opinio delicti a partir das provas obtidas na investigação; não impedindo, entretanto, sob o argumento da titularidade da ação penal pública, a realização de investigações que não sejam requisitadas pelo Ministério Público".

Vale dizer: o fato de o Ministério Público se opor à abertura da ação penal não impede a investigação de eventuais crimes.

Assim, dado o material colhido pela PF, o ministro resolveu abrir um novo inquérito. Afirma em sua decisão:
"As investigações da Polícia Federal trouxeram fortes indícios de que Allan dos Santos [da página Terça Livre] atua na condição de um dos organizadores dos diversos ataques à Constituição Federal, aos poderes de estado e à democracia, principalmente, por meios digitais. (...) Esta atuação ativa, em conjunto com uma séria de parlamentares, atores do universo das redes sociais e outros defensores do rompimento institucional, constitui um dos objetos necessários de futura investigação".

Escreve sobre Santos:
"A partir da posição privilegiada junto ao presidente da República e ao seu grupo político, especialmente os deputados federais Bia Kicis, Paulo Eduardo Martins, Daniel Lúcio da Silveira, Caroline de Toni e Eduardo Bolsonaro, dentre outros, além e particularmente o tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ajudante de ordens do presidente da República, a investigação realizada pela Polícia Federal apresentou importantes indícios de que Allan dos Santos tentou influenciar e provocar um rompimento institucional".

Segundo o ministro, o grupo se articula para obter verbas públicas para financiar atividades antidemocráticas. Escreve:
"Nas anotações apreendidas na residência de Allan - o mesmo local onde se reunia com diversos parlamentares e agentes públicos - havia indicação de possível planejamento de obtenção de verbas públicas via Secom - a Secretaria de Comunicação da Presidência -, fato que precisa ser apurado, identificando se, eventualmente, houve direcionamento e uso de verbas públicas para o fomento dos ataques perpetrados por Allan dos Santos e seu grupo ideológico".

Como não poderia deixar de ser, dois outros Bolsonaros — o senador Flávio e o vereador Carlos — também estão envolvidos com o objeto do inquérito.

O ministro aponta que a Polícia Federal identificou:
"a existência de um possível 'núcleo de divulgação' composto por agentes políticos, servidores públicos e autodenominados comunicadores, cuja finalidade específica é promover ataques a determinados agentes públicos, notadamente integrantes do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, como forma de agredir as instituições democráticas, especialmente a representação popular por representantes do Congresso Nacional e o estado de direito, por meio de ataques ao Supremo Tribunal Federal".

Publicarei aqui, nos próximos dias, trechos do relatório da Polícia Federal detalhando o milagre da multiplicação de recursos de sites bolsonaristas. Pensem, por exemplo, num servidor público com salário líquido de R$ 15 mil que decide doar R$ 53 mil a uma determinada página. Ou num outra, com salário de R$ 38 mil, que, generosamente, transfere para a "causa" a bolada de R$ 90 mil... Isso é que é amor!

A PGR ficou seis meses com o relatório em mãos e pediu para arquivar tudo. Pois é. De acordo com a lei, a investigação vai continuar.

E AGORA ROSA
Como aqui se disse, a ministra Rosa Weber poderia, sim, discordar da manifestação da PGR, segundo quem seria preciso esperar o fim da CPI para que se decidisse sobre eventual abertura de inquérito para apurar a conduta de Bolsonaro, que não tomou nenhuma providência quando advertido pelo deputado Luís Miranda e por seu irmão, Luís Ricardo Miranda, sobre possíveis malfeitos no Ministério da Saúde.

Humberto Jaques de Medeiros, o subprocurador-geral no caso, ainda afirmou que, caso fosse outro o entendimento da ministra, gostaria de prazo para se manifestar outra vez.

E Rosa deixou claro: então que se manifeste de novo porque seu entendimento é outro. Num trecho bastante eloquente de sua decisão, escreve a ministra:
"Com efeito, não há no texto constitucional ou na legislação de regência qualquer disposição prevendo a suspensão temporária de procedimentos investigatórios correlatos ao objeto da CPI. Portanto, a previsão de que as conclusões dos trabalhos parlamentares devam ser remetidas aos órgãos de controle não limita, em absoluto, sua atuação independente e autônoma. Outra não pode ser a interpretação dada ao artigo 58, § 3º, da CF/88 e às Leis nº 1.579/1952 e Lei nº 10.001/20001 2, sob pena, inclusive, de restringir poderes constitucionalmente atribuídos. Ante o exposto, indefiro o pedido para que 'não se dê trânsito à petição', porquanto direito de estatura constitucional, e determino a reabertura de vista dos autos à PGR, para que, oportunizando-lhe nova manifestação nos limites de suas atribuições constitucionais, adote as providências que julgar cabíveis."

E, claro!, a ministra percebeu o "drible da vaca", como apontei neste blog. Medeiros elaborou uma longa resposta como se os senadores estivessem pedindo a abertura imediata de ação penal. Rosa lembra o que o pleno do Supremo consolidou sobre as atribuições do Ministério Público. A ele cabe manifestar-se:
"(a) pelo oferecimento de denúncia,
(b) pela solicitação de maiores esclarecimentos e/ou diligências ou
(c) pelo arquivamento dos autos."

É muito provável que a PGR vá, então, manifestar-se pelo arquivamento.

Bem, como lembra Alexandre de Moraes, o Ministério Público é o titular da ação penal e ponto. Mas não pode impedir a investigação. Porque essa titularidade ele não tem. Assim, se Rosa vir motivos para tanto, pode determinar a abertura de inquérito, ainda que outro seja o entendimento da PGR.

Ainda há juízes em Berlim. E também em Brasília.