Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O erro do CEO da Prevent Senior. Paradoxo da onipotência não poupa nem Deus
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A força-tarefa para apurar o que se deu, ou se dá, na Prevent Senior e na sua rede de hospitais, a Sancta Maggiore, era mais do que necessária. Na quarta-feira, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid-19, anunciou que enviaria informações de posse da Comissão à Procuradoria da Justiça de São Paulo. A rigor, convenham, dadas as articulações do caso, esse trabalho caberia ao Ministério Público Federal. Mas vá lá. O importante é que se investigue. Dirigentes e acionistas deveriam, certamente, ter mais cuidado com a empresa e com seus milhares de clientes. Tem faltado. Fernando Parrillo, o CEO, que concedeu entrevista à Folha, é a prova disso. E terei de falar aqui do "Paradoxo da Onipotência", do qual nem Deus escapa. E, portanto, tampouco estão livres dele os médicos.
Reproduzo, em vermelho, uma sequência de perguntas e respostas da entrevista de Parrillo, com comentários em azul.
O estudo falava em duas mortes, mas foram nove. O que houve?
Essas sete mortes ocorreram depois que o estudo estava fechado. O prazo de observação dos pacientes era de 26 de março a 4 de abril de 2020. Nesse período, dois pacientes faleceram, um de problemas cardíacos e outro de câncer.
Fez-se um "estudo observacional", como se gosta de dizer por lá, de 10 dias, é isso mesmo? Serviria para provar o quê, segundo quais critérios? Certo! As outras sete mortes ocorreram depois. Mas não foram suficientes para que se recolhessem imediatamente as conclusões apressadas? Sete mortes não serviram para anular o que apenas duas aparentemente endossavam?
Por que foi passada uma mensagem dizendo ser necessário mudar o CID (classificação internacional de doenças) de doentes de Covid após 14 ou 21 dias de internação? Era maquiagem de dados?
De forma alguma. Mudávamos o CID para a pessoa sair do isolamento. Depois desse período de 14 a 21 dias, é muito difícil que ela contamine alguém, sendo desnecessário ficar isolada.
O que o isolamento, ou não, tem a ver com a CID? Pergunta: na contabilidade geral das unidades do Sancta Maggiore, os que permaneciam internados depois desse período eram ou não considerados pacientes de Covid-19, ainda que outras moléstias sobreviessem à original?
Mas no relatório de alta ou no atestado de óbito constava a causa da internação, a Covid?
Com toda certeza.
No caso da mãe do empresário Luciano Hang, foi dado o chamado tratamento preventivo?
Não podemos comentar casos de pacientes.
Nesse ponto, as coisas se complicam bastante porque o sigilo deixa de ser apenas uma questão individual e familiar para ser de saúde pública. Parrillo certamente leu a reportagem de Ana Clara Costa publicada na revista Piauí, que traz os infortúnios do médico negacionista Anthony Wong. Não há no seu atestado de óbito a menção à Covid-19. Terapia ainda mais exótica do que o tal "Kit Covid" foi empregada. Refiro-me à aplicação de ozônio pela via retal, num exercício de experimentalismo sem nenhum amparo científico. Nesse caso, o sigilo omite muito mais do que dados pessoais do paciente.
Se não era uma pesquisa científica, com o rigor necessário, por que vocês divulgaram?
Nós queríamos ajudar. Como o mundo inteiro estava perguntando os números, éramos procurados por outros hospitais, autoridades, até gente do exterior, ministro das Bahamas, querendo fazer benchmark, decidimos organizar o que apuramos e divulgar.
Não! A música não pode tocar dessa maneira. Não quando envolve vidas humanas, num estudo dito "meramente observacional", que acompanhou um grupo de pacientes por apenas 10 dias, ignorando as sete mortes posteriores. Acredito que Parrillo sabia que, longe de "ajudar", a Prevent Senior e os hospitais Sancta Maggiore coonestaram uma mentira científica e uma farsa política. A empresa e seu CEO não podem responder pelas ideias fixas do presidente Jair Bolsonaro, é claro!, mas sabem que, durante um largo período, acabaram se tornando parceiros na justificativa do injustificável.
E, nesse tempo, como admite Parrillo, milhares de novos clientes chegaram. Parecia que se estava apenas diante de um choque de opiniões. E uma dessas opiniões prometia que algumas drogas realizavam prodígios contra uma doença para a qual não há droga nenhuma, a não ser aquelas que servem para minorar efeitos colaterais da doença ou para responder a agravos determinados por comorbidades.
Convenham: é humanamente compreensível que muita gente se agarre à esperança, ainda que falsa, quando a ciência, a verdadeira, não tem resposta a dar. Mais de uma vez, o próprio Bolsonaro fez um raciocínio que poderia ser assim resumido: "Já que não há medicamento nenhum, por que não tentar a hidroxicloroquina?" Pior: como a suposta terapia ganhou o adjetivo de "preventiva", muitos tomavam o remédio pensando que se tornavam imunes à doença.
Então, o cardiologista Rodrigo Esper errou ao dizer "nós vamos mudar o rumo da medicina"?
Quando percebemos que o tratamento precoce evitava internações, ficamos eufóricos, dissemos: aqui tem uma esperança.
Estou enganado, ou Parrillo continua a sustentar a efetividade do tratamento precoce? Aí, convenham, as coisas se complicam bastante. A propósito: "o tratamento precoce EVITAVA internações"? Não evita mais? Na mesma entrevista, ele diz: "Mas o nosso artigo não prova que essas drogas funcionam porque, para isso, precisaria de pesquisa científica."
ENTÃO VAMOS VER
O percurso do raciocínio de Parrillo -- antes visitado por Pedro Benedito Batista Júnior no depoimento à CPI e que tem servido de base argumentativa do que vou chamar aqui, genericamente, de "cloroquinismo" -- tenta transformar a relação entre médico e paciente num colóquio entre iguais, como se cidadãos igualmente livres e senhores de sua vontade pudessem estabelecer um pacto.
E isso é absolutamente falso. O doente é o vulnerável; é aquele que espera do seu médico, claro!, a cura, mas porque aposta no seu conhecimento, não nos seus dons milagreiros. No dia em que, nessa relação, tudo for possível, não haverá mais diferença entre ciência e feitiçaria.
PARADOXO DA ONIPOTÊNCIA
Se Deus é onipotente, pode criar uma pedra tão pesada que nem ele próprio possa mover ou carregar? Se não tem como criá-la, não pode tudo. Se não tem como carregá-la, idem. Assim, onipotente não é.
Mas aí vem a genialidade de Santo Tomás de Aquino: "Deus é onipotente para as causas possíveis'. Não há como um retângulo ser um triângulo nem por vontade do Senhor.
A onipotência do médico — ou a do pacto que estabelece com os seus pacientes — há de estar dentro das coisas possíveis. Escudar-se na autonomia do profissional para justificar terapias comprovadamente ineficazes é antes um atalho para o crime e, como se nota no Brasil, para políticas públicas de saúde obviamente criminosas. Essa é apenas a saída fácil do Conselho Federal de Medicina, transformado em puxadinho do bolsonarismo. Nada tem a ver com ciência.
Alguns dos melhores médicos do Brasil cuidam de mim. São meus amigos hoje. Tenho por eles não só respeito, mas também afeto. Se um deles me pedir que dê três pulinhos ao acordar para, sei lá, resolver meu problema de asma, é até provável que continue meu amigo. Mas não mais será meu médico.
No caso da Covid-19, qual é a diferença entre as drogas do tal kit e os três pulinhos?
Respondo: eventuais efeitos colaterais. Das drogas, não dos pulinhos.
Que a Prevent Senior sobreviva à crise. Mas que as pessoas paguem por seus erros. É uma exigência da democracia. E da medicina.