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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

CPI também salvou milhares de vidas. E o que fará Aras sobre Bolsonaro

Relatório Final da CPI, que conta também a história de um tempo. Comissão também salvou vidas - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Relatório Final da CPI, que conta também a história de um tempo. Comissão também salvou vidas Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista do UOL

27/10/2021 06h07

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Quando vieram a público os primeiros elementos do relatório da CPI da Covid, afirmei aqui que o texto já nascia histórico. E isso se confirma agora, quando pode ser lido por todos os brasileiros. A CPI, que nasceu sob a sombra de uma certa descrença, só não é a mais bem-sucedida da história (ao menos ainda) porque existiu a do PC Farias, que resultou no impeachment de Collor. O texto de Renan Calheiros (MDB-AL), relator, é sim uma "narrativa", como gostam de dizer os governistas, mas da categoria "documental": relata os fatos tenebrosos que resultaram no morticínio de quase 610 mil brasileiros. Antes que produza efeitos jurídicos — e o Ministério Público, especialmente a PGR, estará sob escrutínio —, não duvidem: essa comissão salvou milhares de vidas. Vamos entender seus possíveis caminhos. Antes, a salvação.

A VACINAÇÃO
A CPI foi instalada no dia 27 de abril, o mês em que mais vivemos, e morremos, em perigo. Até o dia anterior, haviam recebido a primeira dose da vacina apenas 29.554.723 pessoas -- ou 13,96% da população. Só 13.127.599 brasileiros (6,2%) estavam completamente vacinados. Em 24 horas, contaram-se, então, 1.279 mortes, num total de 392.204 cadáveres. Era uma terça-feira, e havia subnotificação. Em abril, o país ultrapassou as 4 mil mortes no intervalo de um dia mais de uma vez.

Ontem, véspera do aniversário de seis meses da CPI, quando o relatório foi aprovado, 153.733.428 já haviam tomado a primeira dose (72,07%); 112.307.569 estavam com a vacinação concluída (52,65%), e haviam sido aplicadas 7.110.518 doses de reforço. A Covid matou 442 pessoas. Ainda é muito? É. Mas isso representa praticamente um décimo do verificado em alguns dias de abril.

Os cadáveres são agora 606.246, e a delinquência oficialista tem a ousadia criminosa de sugerir que o número de mortes após o início da imunização é maior do que antes dela. É verdade. A doença varreu um país com baixa vacinação com fúria homicida — a fúria homicida de que o governo, por ação e omissão, foi o promotor. À medida que a vacinação avança, assiste-se a uma queda drástica da contaminação e do número de mortos. Vale dizer: à diferença do que diz o presidente, os imunizantes funcionam e salvam vidas. Mas ainda não estamos livres da doença.

As urgências de saúde estavam dadas, como é óbvio, desde sempre. Mas o governo só percebeu que estava se encalacrando politicamente quando as sessões da CPI viraram campeãs de audiência nas redes sociais. Pela cadeira de depoente, passaram algumas das figuras sinistras que ajudaram a povoar os cemitérios ao longo de 20 meses. Não fosse a comissão, estejam certos, o esforço do governo federal em favor das vacinas teria sido menor. Deve-se, claro!, fazer justiça também ao Supremo: o ministro Ricardo Lewandowski exigiu que o governo federal apresentasse um plano de vacinação.

NEGACIONISMO E IMPUTAÇÕES
A investigação serviu para encadear e ordenar, numa sequência lógica, fatos que, de outro modo, se perderiam. O presidente Jair Bolsonaro, fiel a seu estilo, nem mesmo se esforçou para contestar a justa reputação de negacionista. Na verdade, ele a reforçou. Com a investigação em curso, resolveu investir nas suas "motosseatas", estimulando a aglomeração, combatendo o uso de máscara e desafiando a ciência com ataques permanentes às vacinas.

A investida mais estúpida, como se sabe, se deu na última quinta, quando associou as vacinas contra a Covid-19 à AIDS, o que gerou uma onda de indignação mundial. Teve seu vídeo banido do Facebook, do Instagram e do Youtube.

O relatório da CPI, aprovado pelos senadores do chamado G7 -- Eduardo Braga (MDB-AM); Renan Calheiros (MDB-AL); Tasso Jereissati (PSDB-CE); Otto Alencar (PSD-BA); Humberto Costa (PT-PE); Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Omar Aziz (PSD-AM) -- imputa ao presidente da República uma série de nove agressões à ordem legal, a saber:
1: epidemia com resultado de morte;
2: charlatanismo;
3: infração de medida sanitária;
4: emprego irregular de verbas públicas;
5: incitação ao crime;
6: falsificação de documento particular;
7: prevaricação;
8: crime contra a humanidade;
9: violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.

As imputações de 1 a 7 são crimes comuns, listados no Código Penal, e cabe, agora, à Procuradoria Geral da República avaliar se propõe investigação adicional — sim, é possível —, se apresenta denúncia contra o presidente ou se recomenda o arquivamento.

Na primeira hipótese, a PGR pode pedir autorização ao Supremo para a abertura de inquéritos contra o mandatário, que seriam conduzidos pela PF. No caso de o procurador-geral optar por já apresentar uma denúncia ao STF, o tribunal tem de enviar a petição à Câmara. Os ministros precisam da autorização de pelos menos dois terços da Casa (342 deputados) para votar a abertura de uma ação penal. E há possibilidade, finalmente, de a PGR simplesmente recomendar o arquivamento — e, nesse caso, não há nada que o Supremo possa fazer.

A chamada ação penal subsidiária da pública, hipótese em que os senadores apelariam diretamente ao Supremo, só seria possível se Aras decidisse nada fazer. Mas é pouco provável que isso aconteça.

Consta que o procurador-geral pensa em submeter o relatório de Renan a um primeiro exame do Gabinete Integrado Covid-19 (Giac), criado no âmbito da PGR para acompanhar o enfrentamento da doença. O histórico do grupo não é bom. Não só deixou de apontar as lambanças do governo federal no enfrentamento da Covid-19 como deu prioridade à investigação de governadores.

ITENS 8 E 9
O relatório de Renan será enviado também ao Tribunal Penal Internacional para que se avalie a acusação de "crimes contra a humidade". O Brasil é signatário do "Estatuto de Roma", que prevê, no Artigo 7º, o crime de homicídio "quando praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque".

Há quem ache a imputação controversa, coisa de que discordo. A demora para celebrar o acordo com a Pfizer; as ações de sabotagem contra a Coronavac; as lambanças criminosas envolvendo a negociação de imunizantes que nem mesmo estavam disponíveis — ocasião em que a bandidagem invadiu o Ministério da Saúde —; as ações organizadas em favor do "Kit Covid", com a aquisição, produção e distribuição de drogas comprovadamente ineficazes; os ataques estúpidos às medidas sanitárias de prevenção da doença; a indústria perversa de fake news... Bem, isso tudo, em conjunto, resultou no que se vê.

Quanto aos crimes de responsabilidade, bem, eis aí: mais uma vez, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tem em mãos o equivalente a um pedido de impeachment. Sim, já sabemos o destino...

DE VOLTA À HISTÓRIA
Quando resolveu colher assinaturas para a CPI, não duvido de que o senador Randolfe Rodrigues estivesse sinceramente indignado com o que via -- o país já experimentava um flagelo, que iria se agravar terrivelmente. A incompetência do governo era, sim, flagrante, e o presidente despejava, cotidianamente, indignidades nas redes sociais.

Mas me parece certo que nem ele nem ninguém imaginavam o pântano em que havia se transformado o Ministério da Saúde. E, como a comissão deixa claro, nada se deu à revelia do presidente da República. Bolsonaro tanto atuou como se omitiu para produzir um resultado.

E produziu.