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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro tenta ladainha anti-Lula no Congresso e leva a democracia na cara

O presidente Jair Bolsonaro na solenidade que marca o reinício dos trabalhos no Congresso, entre Arthur Lira (esq.) e Rodrigo Pacheco. Teve de ouvir um monte de coisa que detesta... Ainda bem! - Marina Ramos/Câmara dos Deputados
O presidente Jair Bolsonaro na solenidade que marca o reinício dos trabalhos no Congresso, entre Arthur Lira (esq.) e Rodrigo Pacheco. Teve de ouvir um monte de coisa que detesta... Ainda bem! Imagem: Marina Ramos/Câmara dos Deputados

Colunista do UOL

03/02/2022 05h23

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O presidente Jair Bolsonaro conseguiu escapar da sessão que marcou o reinício dos trabalhos no Supremo e não ouviu, portanto, ao vivo, Luiz Fux condenar as tentações autoritárias. Todos sabem quem era o destinatário do recado. Mas não houve jeito. O "Mito" foi obrigado a engolir a seco, nesta quarta, no reinício dos trabalhos no Legislativo, a defesa da democracia e das instituições — com condenação explícita às "fake news" e pregação em favor do respeito ao resultado das urnas —, feita por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado e do Congresso. Também o aliado Arthur Lira (PP-AL), que preside a Câmara, procedeu a uma nada velada exortação ao trabalho, coisa que o "Mito" sabidamente detesta. As respectivas falas de ambos se sucederam a um discurso patético do "Mito" em defesa de uma tal "nossa liberdade" que, todos sabemos, é só a apologia da esculhambação.

Marcando o enterro das ilusões armadas que chegaram a povoar os delírios de Bolsonaro, afirmou Pacheco:
"Num ano de eleições gerais, caberá ao povo bem escolher seus representantes; aos vencedores, fazer de seu mandato um verdadeiro serviço; e aos perdedores, respeitar o resultado das urnas".

Tocando num tema caro a Bolsonaro, beneficiário evidente de milícias digitais que fazem das "fake news" um instrumento de luta política, o presidente do Congresso foi ao ponto:
"É fundamental garantir que o processo eleitoral não seja afetado por manipulações de disparos em massa através robôs. Dos candidatos, acreditemos no debate de ideias, concretude de propostas e respeito às divergências. Das instituições da República, esperemos a fiscalização e punição daqueles que atentem contra o processo eleitoral. Do eleitor, roguemos senso crítico e responsabilidade para distinguir fatos verdadeiros das inaceitáveis 'fake news'".

Convenham: o ambiente era, sem dúvida, hostil a Bolsonaro porque se fazia ali, afinal, a defesa das regras do jogo da democracia. E isso é tudo o que o presidente despreza, ainda que revista sua retórica, para a crença de ninguém, com a "defesa da liberdade".

Embora reformas e ano eleitoral não costumem andar lado a lado, Lira também fez um apelo à concórdia possível:
"Além da dor pela perda de familiares e amigos, o povo brasileiro e a economia global sentem as consequências econômicas da pandemia. O desemprego e a inflação são dois adversários que precisamos confrontar em 2022. Eles precisam ser vencidos com os instrumentos testados e reconhecidos pela ciência econômica, sem truques ilusionistas ou aventuras temerárias. [Conclamo] a todos que deixemos as eleições para outubro. Deixemos os interesses políticos para outubro e, agora, trabalhemos com ainda mais afinco e unidos para aprovar as medidas que são tão necessárias para o país e para os brasileiros. As disputas e tensionamentos devem ficar para o momento de campanha. Agora, o momento é união e diálogo porque o País tem pressa".

Quando se contrasta a fala do presidente da Câmara com a rotina de Bolsonaro, as palavras soam vazias porque o chefe do Executivo é viciado em conflito. Aquela não era, definitivamente, a base com a qual sonhara e para a qual terceirizou o controle do Orçamento. Eis aí: ficou evidente que ele teve de pagar um preço para não ser impichado. Ou por outra: não é ele que comanda o Congresso, como chegou a sonhar, mas é o Congresso quem comanda. Para o bem e para o mal. É para o mal quando o Orçamento é posto a serviço de sua permanência no cargo. Mas é para o bem quando as duas Casas do Legislativo lhe dizem com todas as letras: "Você não comprou a democracia". Bolsonaro ainda não perdeu a eleição. Falta bastante tempo. Mas seu projeto golpista está morto.

"A NOSSA LIBERDADE"
Da mensagem que Bolsonaro enviou previamente ao Congresso e sobre a qual deveria discorrer, não constavam referências explícitas a Lula. Todas as pesquisas apontam o petista como favorito. Se a eleição fosse hoje, poderia vencer até no primeiro turno, apontam vários levantamentos.

No dia em que Comitê de Política Monetária do Banco Central elevou a taxa de juros em 1,5 ponto percentual — a 10,75% — para tentar conter uma inflação que se mostra renitente Bolsonaro foi ao Congresso brandir alguns fantasmas na esperança de se colocar como uma âncora de confiabilidade contra, sei lá como dizer, o "perigo vermelho". Por que começo este parágrafo lembrando a taxa de juros? Porque a decisão, que busca conter uma inflação que não é de demanda — até porque falta renda ao povo para comprar —, vai criar ainda mais entraves ao crescimento e ao emprego. Os pobres padecerão ainda mais. E, como apontam as pesquisas, a larga maioria das vítimas econômicas destes tempos vota em Lula.

Então restou a Bolsonaro se colocar, o que é estupefaciente, como um paladino da liberdade, no que tentava ser, sei lá, uma espécie de alerta aos congressistas contra o "risco Lula". Mandou brasa:
"Os senhores nunca me verão pedir pela regulação da mídia e da Internet. Eu espero que isso não seja regulamentado por qualquer outro Poder. A nossa liberdade acima de tudo. Também nunca virei aqui para anular reforma trabalhista aprovada por esse Congresso. Afinal, os direitos trabalhistas continuam intactos no artigo 7. Sempre respeitaremos a harmonia e independência dos Poderes".

Trata-se de mera cascata de terrorismo eleitoral. De fato, Lula chegou a falar em "regulamentação da mídia", sem deixar claro que modelo tinha em mente. Eu mesmo o critiquei aqui em razão da imprecisão do discurso. O tema, até por disposição constitucional, não pode ser um tabu. Mas é preciso deixar claro do que se trata. O que ele chama de "regulação da Internet" remete à necessidade de coibir e punir as organizações criminosas que atuam nas redes sociais espalhando "fake news". Não é tão difícil de entender. Essas redes não podem continuar impermeáveis ao Código Penal e a outras leis que protegem os direitos individuais, os direitos sociais e a democracia. Não podem, em suma, pairar acima da Constituição. O único que tentou, diga-se, interferir nas ditas-cujas por meio de Medida Provisória, devolvida por Pacheco, foi justamente... Bolsonaro.

Quanto à reforma trabalhista, já afirmei aqui e repito: aquilo a que se chegou não são as tábuas ditadas pelo Altíssimo. Pode ser alterado. A legislação referente a todos esses temas, no entanto, só pode ser mudada pelo Poder Legislativo, ainda que a matéria possa ser de iniciativa do Executivo. Ademais, projetos de lei e emendas constitucionais, quando aprovadas pelo Congresso, estão sujeitos a controle de constitucionalidade. Se eventuais mudanças violarem a Carta, serão certamente objetos de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Não sei se Lula vence a eleição, mas cumpre notar, que, se acontecer, não há em sua carreira histórico de resistir a decisões judiciais ou de mandar o Parlamento e o Supremo às favas. Quem marchou contra esses dois Poderes foi Jair Bolsonaro. Enquanto foi aliado de Sergio Moro, lembrem-se, os moristas engrossaram as manifestações golpistas, brandindo retratos do tabaréu.

REPETIÇÃO DA LADAINHA
Antes, em solenidade no Palácio, Bolsonaro já havia reclamado dos "outros Poderes". Disse:
"Geralmente, quem leva um país para a ditadura é o chefe do Executivo. No Brasil, é o contrário: quem segura o Brasil para não caminhar rumo à Venezuela é o chefe do Executivo. Tem muita gente de outros Poderes conscientes. Alguns poucos, não sei o que pensam. Mas vamos fazer a nossa parte, vamos nos empenhar. Vamos cada vez mais fazer valer a força da nossa Constituição. Nós jogamos dentro das quatro linhas. Vamos cada vez mais exigir que o outro lado, alguns poucos do outro lado -- pouquíssimos --, joguem dentro dessas quatro linhas."

Eis aí. Ele pretende liderar a resistência ao Poder Judiciário, em nome da "nossa liberdade", e se colocar como o antípoda de Lula, mas não numa disputa eleitoral, o que seria normal. Tenta demonizar o adversário como uma grande ameaça à democracia — para a crença de quase ninguém. Na verdade, o que já se nota é outra coisa: parlamentares que pertencem a partidos que formam o tal "centrão" já preparam movimentos de dissidência em favor, justamente, de Lula.

Ah, sim: no evento do Palácio, Bolsonaro se referiu ao episódio da farofa e disse que ele é mesmo um desses caras que arrotam.

Eis aí o paladino da liberdade de arrotar.

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