Topo

Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ucrânia: Bolsonaro desautoriza vice, que tenta citar Karl Marx contra Putin

Hamilton Mourão ao dar a entrevista que irritou Bolsonaro, e o presidente durante live, quando deu pito no vice - Reprodução
Hamilton Mourão ao dar a entrevista que irritou Bolsonaro, e o presidente durante live, quando deu pito no vice Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

25/02/2022 07h57

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ai, ai, o presidente Jair Bolsonaro deu uma esculhambada ontem em Hamilton Mourão, vice-presidente, que havia feito algumas considerações sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Afirmou:
"O Artigo 84 da Constituição deixa bem claro: quem fala sobre esse assunto é o presidente. E o presidente chama-se Jair Messias Bolsonaro. E ponto final. Então, com todo respeito a essa pessoa que falou isso -- e eu vi as imagens, falou mesmo --, tá falando algo que não deve. Não é de competência dela, tá? É de competência nossa."

Lembrou, em seguida, que Brasil importa fertilizantes da Rússia e da Belarus; que ele, Bolsonaro, consulta, antes de falar sobre o tema, os ministros da Defesa e das Relações Exteriores e que Mourão estava "dando peruada naquilo que não lhe compete".

Mas o que é mesmo que o vice havia dito? Pois é... Eis o busílis. Na sua fala, há um roteiro de equívocos, mas que fez um sucesso danado. Seguem trechos em vermelho, com comentários meus.

"Olha, a gente sempre olha a história, né? A HISTÓRIA, ELA ORA SE REPETE COMO FARSA, ORA SE REPETE COMO TRAGÉDIA. Nesse caso, ela está se repetindo como tragédia. O mundo ocidental tá igual ficou em 38 com o Hitler, na base do apaziguamento. E o Putin não respeita o apaziguamento, essa é a realidade. Então, se não houver uma ação bem significativa... E, na minha visão, meras sanções econômicas, que é (sic) uma forma intermediária de intervenção, não funcionam."

O que vai acima em maiúsculas é uma tentativa de citar "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", de Karl Marx. Mas saiu tudo atrapalhado. O que disse nem sentido faz. O autor escreveu outra coisa:
"Hegel observa numa das suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa".

A frase é central da tese do livro: Luís Bonaparte era mera farsa de seu tio: Napoleão Bonaparte.

Na formulação do vice, se Putin fosse a tragédia, Hitler seria a farsa, o que é um despropósito. Como despropositada é a comparação. Adiante

"Tem de haver o uso da força. Mais do que está sendo colocado. Essa é a minha visão. Se o mundo ocidental simplesmente deixar que a Ucrânia caia por terra, o próximo será a Moldávia; depois, serão os Estados Bálticos, e assim sucessivamente, igual a Alemanha hitlerista fez no final dos anos 30."
Mourão está mesmo defendendo que a Otan ataque a segunda potência nuclear do mundo -- perde apenas para os EUA? Na última estimativa que se fez, o armamento nuclear em estoque daria par destruir as 100 maiores regiões metropolitanas do mundo. Fora o que viria depois para quem sobrevivesse... Sigamos com Mourão:

"O Brasil tem tomado posicionamento dele dentro da ONU, né?, respeitando os princípios básicos do direito internacional, de não intervenção, de assegurar a soberania, mas, por enquanto, nós não temos nenhuma outra coisa a fazer além disso aí. Vamos esperar o que emerge do Conselho de Segurança da ONU porque, senão, a ONU também perde a sua razão de ser. O Brasil não está neutro. O Brasil deixou muito claro que ele respeita a soberania da Ucrânia".

Não é bem assim. A nota do Itamaraty é frouxa. Lembro o texto:
"O Governo brasileiro acompanha com grave preocupação a deflagração de operações militares pela Federação da Rússia contra alvos no território da Ucrânia.
O Brasil apela à suspensão imediata das hostilidades e ao início de negociações conducentes a uma solução diplomática para a questão, com base nos Acordos de Minsk e que leve em conta os legítimos interesses de segurança de todas as partes envolvidas e a proteção da população civil.
Como membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Brasil permanece engajado nas discussões multilaterais com vistas a uma solução pacífica, em linha com a tradição diplomática brasileira e na defesa de soluções orientadas pela Carta das Nações Unidas e pelo direito internacional, sobretudo os princípios da não intervenção, da soberania e integridade territorial dos Estados e da solução pacífica das controvérsias."

Como fica evidente, não há uma condenação clara e inequívoca à invasão. E o governo do Brasil deveria tê-lo feito, ainda que algumas considerações sejam necessárias.

AS CONSIDERAÇÕES
Putin é um autocrata. Não foi e não será com ele que a Rússia vai saber o que é viver num regime democrático. Mas a história nos ensina, de modo bastante eloquente, que não se exporta democracia. Tampouco ela pode ser imposta. Os nacionais, ao longo do tempo, vão fazendo as suas escolhas. Não há nada de errado com o princípio da "autodeterminação dos povos". Ocorre que ele não se materializa no vácuo. A invasão da Ucrânia desrespeita, sim, os fundamentos mais comezinhos do direito internacional. O vice-presidente e quase todo mundo estão certos quando o apontam,

Mas não é menos verdade que, no concerto internacional, costuma-se olhar pouco para a cor dos gatos, desde que cacem ratos, para lembrar a máxima de Deng Xiaoping. Alguma vez os EUA se importaram com os direitos humanos na Arábia Saudita? Enquanto escrevo, o país lidera uma coalizão que promove massacres de populações civis no Iêmen. Quem liga? A monarquia absolutista comandada, na prática, pelo carniceiro Mohammed bin Salman Al Saud — que Bolsonaro convidou para visitar o Brasil — tem importância estratégia para os EUA e para a Europa. Então ela pode matar sem temor nem perigo. E as fotos das crianças esquálidas do Iêmen não comovem quase ninguém porque não frequentam o noticiário.

Faço essa lembrança num esforço, certamente inútil, de tirar o binômio Rússia-Ucrânia de uma estrutura que parece destinada a integrar, na imprensa brasileira, o fabulário infantil. E que se presta a associações absurdas, como as que fez o vice-presidente. Afirmei já há tempos no programa "O É da Coisa", na BandNews FM, que se tem a impressão de que o Lobo Mau resolveu engolir a vovó para pegar Chapeuzinho Vermelho. Ou que está usando da desídia dos porquinhos para comê-los. Ou que está a pretextar falsos motivos para papar o cordeiro. Sempre o lobo, com suas características malignas, a enganar os ingênuos.

Ah, não! Definitivamente, não estou aqui a justificar o ataque perpetrado por Putin. A agressão ao direito internacional é clara e inequívoca. Mas ignorar que ela é um ponto — de extrema gravidade — numa trajetória corresponde a ignorar a história, fixar-se apenas no berreiro ideológico e distanciar-se de qualquer coisa que possa, um dia, vir a ser uma solução.

Busquem aí um adjetivo para desqualificar o presidente russo, e é muito grande a chance de que eu concorde. Mas, ao mesmo tempo, olho o mapa da Europa e lá enxergo 28 países que hoje fazem parte da Otan. Nada menos de 14 deles pertenciam ao bloco socialista. Três faziam parte da União Soviética: Lituânia, Letônia e Estônia — estes dois na fronteira com a Rússia. Chamar o presidente russo de "expansionista" é um erro e uma mentira. Girem o Globo Terrestre para constatar quão perto a Rússia está dos outros dois membros da Otan: EUA (Alasca) e Canadá.

Quem escolheu uma política obviamente expansionista na Europa, convenham, não foi Putin, o autocrata realmente detestável, mas a Otan. Uma aliança militar precisa de um inimigo para fazer sentido, certo? De vez em quando, aparece um Khadafi para testar uma nova tecnologia de guerra. Mas não é preciso ser muito sagaz para perceber que o adversário que justifica a existência de tal aliança é a Rússia. O avanço para a Leste contratava um conflito. E ele chegou.

ENCERRO
Bolsonaro não condenou a invasão por maus motivos, dado que inexistem os bons para agir assim. Mas a tese de Mourão, que não é muito distinta da que circula em boa parte da imprensa -- exceto o apelo absurdo à reação armada -- é pura retórica vazia. Putin nem sequer é a farsa de Hitler.