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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Rússia e Ucrânia falam em acordo. E o papo de um infanticida com Washington

Criança do Iêmen vítima dos ataques indiscriminados a civis comandados por Mohammed bin Salman (destaque), ministro da Defesa da Arábia Saudita e seu governante de fato. É o "nosso" (deles) infanticida - Reprodução
Criança do Iêmen vítima dos ataques indiscriminados a civis comandados por Mohammed bin Salman (destaque), ministro da Defesa da Arábia Saudita e seu governante de fato. É o "nosso" (deles) infanticida Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/03/2022 07h21

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Tanto o governo russo como o ucraniano deram sinais, neste domingo, de que, em alguns dias, pode haver um acordo. Cada um o fez a seu estilo. O representante de Vladimir Putin expressou-se de maneira seca, numa linguagem formal, quase burocrática; o de Volodymyr Zelensky... Bem, a exemplo do chefe, um pouco fala em paz, sugerindo que está a dar uma surra no inimigo, um pouco prega a hecatombe nuclear, ainda que por intermédio de outras palavras. Os acenos vieram a público num dia especialmente perigoso.

Ah, para que eu também não esqueça, como faz quase todo o mundo, incluindo parte considerável da imprensa brasileiras e de comentadores candidatos a Estagiários da Terceira Idade do Pentágono: crianças continuam a ser massacradas e mutiladas no Iêmen por forças lideradas pela Arábia Saudita, que executou 81 pessoas num único dia. Joe Biden, que, quando candidato, havia prometido transformar em pária Mohammed bin Salman, o governante de fato do reino saudita, agora está de namorico político com o psicopata para tentar evitar um caos maior do mercado de petróleo. Salman pode mandar picar um adversário se ficar contrariado, como fez com o jornalista saudita Jamal Khashoggi, mas é, no fim das contas, "o nosso (dele) Salman Picadinho". Pois é... Essa gente sabe que ninguém dá muita bola para crianças iemenitas, líbias, sírias, iraquianas, afegãs...

Em vídeo publicado nas redes sociais, Mikhailo Podoliako, conselheiro de Zelensky que participa das negociações, afirmou:
"A princípio não vamos ceder em nenhuma posição, a Rússia agora entende isso. [Mas] a Rússia já está começando a falar de forma construtiva. Acho que alcançaremos alguns resultados literalmente em questão de dias".

E depois escreveu:
"Nossas demandas são o fim da guerra e a retirada das tropas. Vejo um entendimento, e há um diálogo",

Se formos nos ater apenas ao que foi dito e escrito, nada vai acontecer a não ser mais mortes. Vejam ali: "não vamos ceder em nenhuma posição". E depois: "Nossas demandas são o fim da guerra e a retirada das tropas". A ser assim, restaria ao presidente russo ordenar que seus soldados voltassem para casa. Nada faz supor que possa acontecer dessa maneira.

A agência de notícias RIA divulgou a fala de Leonid Slutski, que falou em nome de Putin:
"Segundo as minhas expectativas, esse progresso pode crescer nos próximos dias em uma posição conjunta de ambas as delegações, em documentos para assinatura".

Um eventual acordo seria feito em quais termos? Na sexta, o próprio Putin havia afirmado ver alguns progressos.

PERIGO EXTREMO
No dia em que parece ter havido certo aceno à paz, forças russas bombardearam um centro de treinamento militar perto da cidade de Lviv, a menos de 25 quilômetros da fronteira com a Polônia, país que é membro da Otan, cujo governo é o mais beligerante da aliança. O extremista de direita Andrzej Duda, presidente, que ceder ao governo da Ucrânia 28 caças de fabricação russa, herdados ainda do governo comunista. E, creiam, há quem ache que isso seria mesmo uma boa ideia. Nem a Otan topou.

A Polônia é porta de entrada de boa parte do armamento — defensivo e de ataque — que EUA e Europa estão enviando aos ucranianos. Um evento grave como esse tão perto da fronteira alerta para o risco óbvio: um pequeno erro de cálculo — ou, por que não?, um ato proposital — e a Otan se verá na contingência de enfrentar a Rússia. E pronto! Pode ser o início da grande tragédia. A Ucrânia sustenta que o ataque deixou 35 mortos. A Rússia afirma ter matado 180 "mercenários".

Lá no primeiro parágrafo falo "em hecatombe nuclear por intermédio de outras palavras". Zelensky, claro!, decidiu se pronunciar em vídeo sobre o caso. E nem se esperava algo diferente. Mas o fez nos seguintes termos, referindo-se à Otan:
"Se não fecharem o nosso céu, é só questão de tempo para que foguetes russos caiam sobre o seu território, sobre o território da Otan".

Observem que essa é a sua reivindicação de sempre. Qualquer um com mínimo de juízo — até Joe Biden e a Otan... — entende que isso corresponderia a uma declaração de guerra à Rússia. Putin, aliás, já afirmou que o armamento que está sendo enviado à Ucrânia pela Otan — que entra pela fronteira polonesa — é um "alvo militar legítimo". Atenção: "alvo militar legítimo" não quer dizer "invasão legítima". Como esse armamento busca se defender dos militares russos ou atacá-los, é evidente que se trata de um... alvo militar.

Dadas as falas de Zelensky e de seu negociador, cabe a pergunta: "Mas onde está o progresso?" A própria Rússia, no entanto, diz que ele existe, e se nota que, por óbvio, o dito-cujo não deriva da disposição de Putin de suspender os ataques ou de deixar de atingir alvos que ele considera "militarmente legítimos". Logo, é de se supor a existência de alguma conversa que vá além dos quase monossílabos do governo russo e da logolatria do líder ucraniano.

TEM DE PARAR
Motivos para otimismo, convenham, não há muitos, não. Zelensky havia acenado com a possibilidade de negociação ali pelo terceiro ou quarto dia da invasão. A Otan -- leiam-se: Joe Biden e Boris Johnson -- o fizeram mudar de ideia e endurecer o discurso. O resultado, para ser objetivo, será medido em corpos e destruição. Os candidatos a Estagiários da Terceira Idade do Pentágono poderiam ao menos ter a honestidade de informar que, até agora, a Rússia fez ataques selecionados, escolhendo como alvos obras de infraestrutura e instalações militares ou de interesse militar. E só por isso uma invasão daquela magnitude não fez muitos milhares de cadáveres.

Mas isso pode acontecer, sim, até porque a Ucrânia escolheu militarizar a população civil — mulheres, crianças e idosos que conseguirem emigrar podem deixar o país; os homens ficam para lutar. À medida que o agressor vai minando a infraestrutura de serviços, a população vai sendo empurrada para áreas que ainda não foram atacadas, de modo que a continuidade da guerra, aí sim, pode implicar a morte de milhares de pessoas. Trata-se de uma guerra que a Ucrânia não tem como vencer no campo militar. Putin está encalacrado, sim, e seu destino pode não ser o melhor. Mas isso não é pra já. O suposto heroísmo de Zelensky está sendo alimentado pelo sangue de inocentes. É indecente não reconhecê-lo. Essa guerra tem de parar. Até para que Putin, então, possa pagar por seus crimes. Mas isso não será resolvido no campo de batalha.

E as sanções econômicas? Bem, o Brasil, por exemplo, já começou a enfrentar as consequências da sanção ao petróleo russo. Tudo o mais constante, vai faltar fertilizante à nossa agricultura, com efeitos óbvios no abastecimento interno e na exportação. "Ah, seremos todos nós, agora, reféns de Putin? Teremos de ceder a ele?" Não! Mas também cabe perguntar se seremos todos reféns das decisões políticas tomadas pela Otan e pela elite política antirrussa que governa a Ucrânia desde 2014, incluindo o "Batalhão Azov", por exemplo, a mais armada e poderosa milícia neonazista do mundo. Assumiu tal força na "resistência" que o Facebook decidiu permitir elogios aos neonázis — desde que seja para atacar os russos invasores... Isso dá conta da delinquência intelectual da decisão: "Contra os russos, permitiremos até a exaltação de neonazistas".

ARÁBIA SAUDITA
O Ministério do Interior da Arábia Saudita executou, no sábado, de uma vez só, 81 pessoas. Todas teriam ligações com a Al Qaeda e com o Estado Islâmico. Verdade? Não há como saber. Trata-se de uma tirania, sob o comando do príncipe Mohammed bin Salman, que, já está demonstrado, encomendou a eliminação do jornalista saudita Jamal Khashoggi no interior da embaixada do país na Turquia. Não é melhor com os da família: já mandou prender um tio e dois primos que representariam ameaças a seu poder.

Ocupa o cargo de ministro da Defesa e é o governante de fato do país. O rei Salman, seu pai, está com doença de Alzheimer e já não tem como governar. Sob o pretexto de combater o terrorismo, MBS, como é conhecido, comanda um massacre de civis no Iêmen. Na sua coluna de ontem na Folha, Nelson de Sá destacou:
O francês Le Monde noticiou, assim como a qatari Al Jazeera e o China Daily, do Ministério do Exterior chinês, mas poucos mais. O Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) informou no sábado em Saná, capital do Iêmen, que 47 crianças foram mortas ou mutiladas em janeiro e fevereiro, na guerra que "recrudesceu recentemente". Em sete anos, já foram mortas 10.200 crianças.
O americano Wall Street Journal mal registrou, em extensa reportagem no domingo, em que acompanha os combatentes pró-Arábia Saudita e Emirados, em Marib, cidade no Norte do Iêmen. Na chamada na home, "Sauditas lutam para virar o jogo" contra os combatentes pró-Irã.
"Balas inimigas rasgam por cima da cabeça", começa o texto, que destaca um soldado que chama de "Fouad O Bravo". Os ataques, sobretudo aéreos, dos militares sauditas e seus aliados usam armamentos e têm apoio dos Estados Unidos.
Mas querem mais. Segundo o enviado do WSJ, "uma alta autoridade saudita" avisou: "Se eles tomarem o controle de Marib, nós vamos perder a guerra e perder a estabilidade na região"
.

ENCERRANDO
Na campanha eleitoral, Joe Biden havia prometido que MBS "pagaria por seus crimes". Sabem como é... Sempre esse viés de polícia do mundo! Mas o assassino em massa e criminoso de guerra pode ficar tranquilo. O governo americano já o procurou para um papinho. A Arábia Saudita é o maior exportador de petróleo do mundo. Acontece que o segundo, a Rússia, é alvo de sanções, Assim, MBS tem de ajudar a manter a oferta de óleo a níveis não catastróficos. Imaginem se o ditador também fica magoado. Não vai ficar. Já se acertou com Washington. Uma publicação ligada aos democratas já o chamou até de "gentil". De resto, a Arábia Saudita é aliada da Casa Branca na luta contra o Irã, que dá apoio a forças que tentam derrubar o governo do Iêmen.

Só para lembrar: MBS é amigão de Donald Trump e ainda mais de Jared Kushner, seu genro. Biden implicava com ele também por isso. Mas o democrata exemplar precisava de sua guerra, não?

Assim, nessas circunstâncias, um ditador que manda bombardear populações civis pode ser um aliado importante para "manter a estabilidade na região"... Ainda que mate criancinhas.

O que isso tem a ver com Putin e a guerra na Ucrânia?

Quem quer que fizesse essa pergunta não mereceria a resposta.