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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

JN ainda nem entrevistou Bolsonaro, mas ele já esmagou William e Renata

Jair Bolsonaro, que será entrevistado nesta segunda no Jornal Nacional. Suas milícias digitais já entraram em ação - Gabriela Biló/Estadão
Jair Bolsonaro, que será entrevistado nesta segunda no Jornal Nacional. Suas milícias digitais já entraram em ação Imagem: Gabriela Biló/Estadão

Colunista do UOL

22/08/2022 16h52

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Jair Bolsonaro nem precisa ser entrevistado por William Bonner e Renata Vasconcellos, do Jornal Nacional. O encontro acontecerá logo mais, a partir das 20h30, na TV Globo. Não aconteceu ainda, mas é claro que o presidente já "arrasou", "humilhou", "esmagou", "arrebentou", "mitou" e "triturou" — ou sei lá a que verbos e neologismos influentes recorrem as milícias digitais para certificar o triunfo do seu líder. É mentira porque a entrevista nem aconteceu. Mentira será mesmo depois de acontecida. E daí?

O evento, em si, para eles, é irrelevante. O que interessa é o número de "interações" positivas que serão produzidas nas redes. Como há "institutos" que "mensuram" esse tipo de coisa e como a grande imprensa reproduz esses dados, fecha-se o círculo da vitória de Bolsonaro mesmo antes da entrevista. O PT, por exemplo, é menos estruturado nessa área do que o bolsonarismo. Lula só fala na quinta. Mas é quase certo que as tais "interações positivas" serão menores. E pronto. Antevejo o título "bem objetivo", é certo: "JN rende mais frutos positivos para Bolsonaro".

O jornalismo profissional, em larga medida, foi capturado pelas redes — sua obrigação, é evidente, seria manter o distanciamento crítico também nesse caso. Não acontece. E o mesmo valerá para os debates de que Bolsonaro participar: "arrasou", "humilhou", "esmagou"... É sempre assim.

VAMOS COM CUIDADO
Para que avance, preciso fazer aqui algumas considerações. E peço que sejam lidas com o devido cuidado. Não irei eu, à moda do bolsonarismo, antecipar o resultado do evento. Não sei como será a conversa. Não sou fã do estilo que simula uma verdadeira batalha entre entrevistadores e entrevistados, como se o jornalismo só triunfasse com o inquirido silenciado, contra a parede.

Não vai aqui nem mesmo uma sombra de crítica à dupla de profissionais que comanda o JN. Ao contrário: são competentes, informados, rápidos, experimentados. Trata-se, em suma, de exímios entrevistadores. Entendo, no entanto, que o estilo dialógico seria mais útil para revelar "quem é quem" do que o que chamo "inquisitivo". Noto, à margem, que essa linha só é empregada com candidatos. O procedimento não se repete, na Globo, com profissionais de nenhuma outra área que tenham voz pública. Pergunto se isso não parte de um viés original que tem de ser repensado, a saber: "A política é um mal que temos de tolerar; então vamos ser duros".

Em 2018, a severidade que mal dava tempo de o entrevistado tomar fôlego foi indistintamente empregada com todos os entrevistados. É mentira, como o bolsonarismo espalhou e espalha, que William e Renata tenham sido especialmente duros com Bolsonaro. Na minha avaliação pessoal, note-se, a carga maior recaiu sobre Geraldo Alckmin — e não creio que a intenção tenha sido essa. Fosse uma entrevista de emprego, o então candidato do PSL teria quebrado a cara. Mas não era.

Bolsonaro disse coisas pavorosas e levou uma invertida histórica de Renata ao debater o salário menor pago a mulheres para desempenhar as mesmas funções.

Lembro uma das delicadezas, que é uma síntese da "incivilização" bolsonariana, ditas pelo então candidato:
"Temos que fazer o quê? Em local que você possa deixar livre da linha de tiro as pessoas de bem da comunidade, ir com tudo para cima deles. E dar para o agente de segurança pública o excludente de ilicitude. Ele entra, resolve o problema. Se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado [o policial] e não processado."

Seu público delirou. Ele também se orgulhou de ter votado contra a PEC que garantia direitos às domésticas.

Para candidatos com esse perfil, quanto pior, melhor.

TEMPOS INSANOS
Notem: nenhum candidato deve ser poupado de seus erros e de suas contradições. E todos têm seu estoque de impropriedades. Estes tempos são especialmente perversos porque as falhas de Bolsonaro, qualquer que seja o juízo que se faça de seus adversários -- e pode ser o mais negativo possível --, elevam-se, entre os demais, na ruindade e no perigo. Só ele ameaça as instituições democráticas com um golpe; só ele acena com a luta armada; só ele faz a apologia da violência policial; só ele defende que as Forças Armadas têm a função de Poder Moderador.

Nesse caso, vejam que desventura!, tratar igualmente os desiguais privilegia aquele que ataca o sistema de liberdades que permite até mesmo a existência da própria entrevista. "Ah, então você quer que o JN seja duro com ele e 'bonzinho' com os outros?" Não quero nem cobro nada. Noto apenas que, entre os muitos defeitos de Bolsonaro, não se inclui a falta de esperteza: por mais que os entrevistadores sejam severos, ele vai usar os 40 minutos para soar o "apito de cachorro" (dog whistle), convocando os convertidos, exaltar as supostas virtudes de seu governo e, tudo saindo como o diabo (ops!) gosta, posar de vítima triunfante de dois entrevistadores implacáveis.

ENCERRO
Não sei se o Brasil começa a sair do buraco ou se vai se afundar um pouco mais depois de outubro. Não tenho bola de cristal. O que me parece certo é que um golpista merecer, para o bem e para o mal, o mesmo tratamento que será dispensado a pessoas que jogam segundo as regras já é um primeiro sinal de derrota da democracia.

É claro que o JN, sozinho, nada pode fazer a respeito. Isso diz respeito à sociedade brasileira, que vem resistindo dentro do possível. Ou talvez possa um tantinho: não dar a ele o poder da vítima.

Hoje, uma entrevista bastante aguardada é só a véspera de uma guerra de memes. Que a imprensa profissional consiga, na avaliação do desempenho dos candidatos, ir além do ambiente empestado das redes.