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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Analiso fala de Lula trecho a trecho. Ele e Brasil voltam a concerto global

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

16/11/2022 23h36

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O mundo, com razão, reverencia o discurso de Lula, presidente eleito, na COP27. Ele anunciou: "O Brasil está de volta ao mundo". E o mundo fez eco: "E Lula está de volta ao Brasil". Não há nada fora de lugar na fala do ex que é futuro presidente. Quando se lê, no entanto, o noticiário por aqui, fica-se com a impressão de que lhe seria mais fácil agradar ao planeta — ou a parte considerável dele — do que a alguns críticos locais.

COBRANDO OS RICOS
O petista expressou o compromisso com metas ambientais, mas voltou a fazer uma cobrança clara aos países ricos, o que não é novidade no seu discurso. "Ah, mas também Ricardo Salles, ex-ministro de Bolsonaro, pediu dinheiro aos ricos". Há diferenças significativas. Sua fala não embute uma espécie de chantagem: "Deem-nos dinheiro, e preservaremos árvores". Tampouco Lula se põe apenas como procurador dos interesses do seu país. Advoga em favor "dos mais pobres" -- e, pois, de um grupo imenso que se sente representado por suas palavras. Reproduzo:

"Gastamos trilhões de dólares em guerras que só trazem destruição e mortes, enquanto 900 milhões de pessoas em todo o mundo não têm o que comer. Vivemos um momento de crises múltiplas -- crescentes tensões geopolíticas, a volta do risco da guerra nuclear, crise de abastecimento de alimentos e energia, erosão da biodiversidade, aumento intolerável das desigualdades. São tempos difíceis. Mas foi nos tempos difíceis e de crise que a humanidade sempre encontrou forças para enfrentar e superar desafios. Precisamos de mais confiança e determinação. Precisamos de mais liderança para reverter a escalada do aquecimento. Os acordos já finalizados têm que sair do papel. Para isso, é preciso tornar disponíveis recursos para que os países em desenvolvimento, em especial os mais pobres, possam enfrentar as consequências de um problema criado em grande medida pelos países mais ricos, mas que atinge de maneira desproporcional os mais vulneráveis.

ELEIÇÕES E QUESTÃO CIVILIZATÓRIA
O futuro presidente se referiu à eleição no Brasil. E, nesse caso, não cometeu impropriedade nenhuma. Até porque falou como convidado, não como chefe de Estado, embora o mundo lhe tenha dispensado esse tratamento. Acertou ao fazê-lo num fórum sobre o clima porque a questão ambiental foi central na disputa eleitoral. E de dois modos: 1) o agro foi um dos principais financiadores da campanha de Bolsonaro, além de ter constituído o núcleo duro de sua campanha; 2) fez-se muito terrorismo, espalhando-se a fantasia de que a política ambiental implicaria prejuízos para o setor.

Lula acerta também ao deixar claro que o resultado das eleições no Brasil sempre foi do interesse do mundo. Afinal, elas implicaram a escolha de um caminho para a Amazônia. E triunfaram, afirmou ele, os valores civilizatórios. Ou, ao menos, obtiveram mais votos, ainda que com margem estreita. Segue trecho pertinente:
"Estou hoje aqui para dizer que o Brasil está pronto para se juntar novamente aos esforços para a construção de um planeta mais saudável. De um mundo mais justo, capaz de acolher com dignidade a totalidade de seus habitantes - e não apenas uma minoria privilegiada. O Brasil acaba de passar por uma das eleições mais decisivas da sua história. Uma eleição observada com atenção inédita pelos demais países. Primeiro, porque ela poderia ajudar a conter o avanço da extrema-direita autoritária e antidemocrática e do negacionismo climático no mundo. E também porque, do resultado da eleição no Brasil, dependia não apenas a paz e o bem-estar do povo brasileiro, mas também a sobrevivência da Amazônia e, portanto, do nosso planeta. Ao final de uma disputa acirrada, o povo brasileiro fez a sua escolha, e a democracia venceu. Com isso, voltam a vigorar os valores civilizatórios, o respeito aos direitos humanos e o compromisso de enfrentar com determinação a mudança climática."

AGRONEGÓCIO E NATUREZA
Em ao menos dois momentos, o presidente eleito se referiu ao agro de maneira explícita -- embora, convenham, quase todo o discurso diga respeito ao setor. Começou lembrando que a queda drástica de desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012 não implicou perdas para o agronegócio. Ao contrário: o primeiro caiu 83%, mas o PÌB do setor cresceu 75% -- nas minhas contas, quase 100%, mas não sei que base de cálculo ele empregou.

E Lula notou que o desastre na política ambiental não estava descolado de todo o resto, muito especialmente do descaso com milhares de vidas no enfrentamento da pandemia. Leiam:
"O Brasil já mostrou ao mundo o caminho para derrotar o desmatamento e o aquecimento global. Entre 2004 e 2012, reduzimos a taxa de devastação da Amazônia em 83%, enquanto o PIB agropecuário cresceu 75%. Infelizmente, desde 2019, o Brasil enfrenta um governo desastroso em todos os sentidos - no combate ao desemprego e às desigualdades, na luta contra a pobreza e a fome, no descaso com uma pandemia que matou 700 mil brasileiros, no desrespeito aos direitos humanos, na sua política externa que isolou o país do resto do mundo, e também na devastação do meio ambiente. Não por acaso, a frase que mais tenho ouvido dos líderes de diferentes países é a seguinte: "O mundo sente saudade do Brasil." Quero dizer que o Brasil está de volta."

Mais adiante, o petista voltou a se referir ao agronegócio nestes termos:
"A produção agrícola sem equilíbrio ambiental deve ser considerada uma ação do passado. A meta que vamos perseguir é a da produção com equilíbrio, sequestrando carbono, protegendo a nossa imensa biodiversidade, buscando a regeneração do solo em todos os nossos biomas e o aumento de renda para os agricultores e pecuaristas. Estou certo de que o agronegócio brasileiro será um aliado estratégico do nosso governo na busca por uma agricultura regenerativa e sustentável, com investimento em ciência, tecnologia e educação no campo, valorizando os conhecimentos dos povos originários e comunidades locais. No Brasil há vários exemplos exitosos de agroflorestas. Temos 30 milhões de hectares de terras degradadas. Temos conhecimento tecnológico para torná-las agricultáveis. Não precisamos desmatar sequer um metro de floresta para continuarmos a ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Este é um desafio que se impõe a nós brasileiros e aos demais países produtores de alimentos. Por isso estamos propondo uma Aliança Mundial pela Segurança Alimentar, pelo fim da fome e pela redução das desigualdades, com total responsabilidade climática".

É o discurso correto. Mais de uma vez, Lula já afirmou que ele não faz distinção entre a exportação de commodities primárias, especialmente a agropecuária, porque, na escala em que se produz no Brasil, fala-se também de tecnologia. A lembrança dos 30 milhões de hectares degradados é oportuna porque, com investimento e com medidas corretas, o país não precisa desmatar para produzir mais. E é também o que quer o agro de ponta — e, aqui, não me refiro a madeireiros ilegais e a pistoleiros que avançam sobre terras indígenas, comprometendo, eles sim, um setor vital para a economia brasileira. A "Aliança Mundial pela Segurança Alimentar", de que fala o presidente eleito, é matéria para a diplomacia — e também se aposta no seu renascimento.

MULTILATERALISMO
Nesse sentido, o petista exalta o multilateralismo, que interessa ao Brasil. Esse é o caminho para facilitar o aguardado acordo entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo. Todos sabem que, no caso, o entendimento depende do lado para o qual pender o Brasil. Lula diz ao mundo que o país está de volta ao concerto global, mas faz cobranças. A realidade, diz ele, saída da Segunda Guerra envelheceu, sendo chegada a hora de revê-la. Não é uma reivindicação fácil, claro! Mas não é se comportando como sendo um pária naquela que é uma das principais questões do planeta -- o clima -- que se vão mudar as coisas. Segue outro trecho.

"Voltamos para ajudar a construir uma ordem mundial pacífica, assentada no diálogo, no multilateralismo e na multipolaridade. Voltamos para propor uma nova governança global. O mundo de hoje não é o mesmo de 1945. É preciso incluir mais países no Conselho de Segurança da ONU e acabar com o privilégio do veto, hoje restrito a alguns poucos, para a efetiva promoção do equilíbrio e da paz. No pronunciamento que fiz ao fim da eleição no Brasil, em 30 de outubro, ressaltei a importância de unir o país, que foi dividido ao meio pela propagação em massa de fake news e discursos de ódio. Naquela ocasião, eu disse que não existem dois Brasis. Quero dizer agora que não existem dois planetas Terra. Somos uma única espécie, chamada Humanidade, e não haverá futuro enquanto continuarmos cavando um poço sem fundo de desigualdades entre ricos e pobres."

CLIMA E DESIGUALDADE
Um dos pontos altos da fala de Lula é aquele em que discorre sobre a desigualdade e a questão climática. A desproporção na emissão de carbono entre o 1% mais rico e os 50% mais pobres no mundo é uma aberração. Assim, como resta evidente, os muito ricos e os muito pobres se aproveitam de forma estupidamente desigual dos bens produzidos no mundo e contribuem de maneira absurdamente distinta para o desequilíbrio climático.

Isso impõe especial responsabilidade aos países ricos. Não só é preciso, como já visto, que auxiliem os mais pobres, como urge que mudem as suas práticas. Em outras palavras, Lula está dizendo que o Brasil está disposto a fazer a sua parte -- em vez de se entregar, como hoje, a chicanas com queimadas e desmatamento --, mas é preciso que os endinheirados se perguntem se estão, eles também, cuidando do que lhes cabe. E não estão. A desigualdade na emissão de carbono é também desigualdade social e fome. Leiam:
"A desigualdade entre ricos e pobres manifesta-se até mesmo nos esforços para a redução das mudanças climáticas. O 1% mais rico da população do planeta vai ultrapassar em 30 vezes o limite das emissões de gás carbônico necessário para evitar que o aumento da temperatura global ultrapasse a meta de 1,5 grau centígrado até 2030. Este 1% mais rico está a caminho de emitir 70 toneladas de gás carbônico per capita por ano. Enquanto isso, os 50 por cento mais pobres do mundo emitirão, em média, apenas uma tonelada per capita, segundo estudo produzido pela ONG Oxfam e apresentado na COP 26. Por isso, a luta contra o aquecimento global é indissociável da luta contra a pobreza e por um mundo menos desigual e mais justo."

A AMAZÔNIA NO CENTRO
Todos já cansamos de ouvir que a "Amazônia é o pulmão" do mundo. É metáfora -- e das tontas. Consome de noite o oxigênio que produz de dia. Se o desmatamento cresce muito, o saldo acaba sendo negativo. Nada disso! A Amazônia regula o sistema de chuvas no mundo, isto sim, e é uma das grandes regentes da água doce do planeta. Assim, sem a preservação da floresta, o mundo está ameaçado -- a começar, por óbvio, do alimento. Desmatar para plantar pode resolver a ambição do desmatador, mas agride a produção de comida em prazo nem tão longo.

E Lula, então, anuncia:
"Não há segurança climática para o mundo sem uma Amazônia protegida. Não mediremos esforços para zerar o desmatamento e a degradação de nossos biomas até 2030, da mesma forma que mais de 130 países se comprometeram ao assinar a Declaração de Líderes de Glasgow sobre Florestas. Por esse motivo, quero aproveitar esta Conferência para anunciar que o combate à mudança climática terá o mais alto perfil na estrutura do meu governo. Vamos priorizar a luta contra o desmatamento em todos os nossos biomas. Nos três primeiros anos do atual governo, o desmatamento na Amazônia teve aumento de 73%. Somente em 2021, foram desmatados 13 mil quilômetros quadrados. Essa devastação ficará no passado."

O presidente eleito não ignora que há mais do que as preciosas árvores na região amazônica. Lá residem nada menos de 28 milhões de brasileiros. E eles precisam ter uma resposta econômica. Ademais, o desenvolvimento sustentável, acrescendo eu, é mais caro do que a devastação, que pode render benefícios de curto prazo, mas inviabilizar a região -- e, no limite, o planeta no médio. Assim, ele deixa claro que vai cumprir uma promessa de campanha: criar o Ministério dos Povos Originários. Leiam:
"Esses crimes afetam sobretudo os povos indígenas. Por isso, vamos criar o Ministério dos Povos Originários, para que os próprios indígenas apresentem ao governo propostas de políticas que garantam a eles sobrevivência digna, segurança, paz e sustentabilidade. Os povos originários e aqueles que residem na região Amazônica devem ser os protagonistas da sua preservação. Os 28 milhões de brasileiros que moram na Amazônia têm que ser os primeiros parceiros, agentes e beneficiários de um modelo de desenvolvimento local sustentável, não de um modelo que ao destruir a floresta gera pouca e efêmera riqueza para poucos, e prejuízo ambiental para muitos. Vamos provar mais uma vez que é possível gerar riqueza sem provocar mais mudança climática."

Em seu pronunciamento, anunciou a reativação do Fundo Amazônia, que dispõe hoje de US$ 500 milhões que estão congelados pela estupidez e pela incúria. É claro que isso não é "a resposta" ao desenvolvimento sustentável da Amazônia. Mas agora o Brasil está de volta à mesa de negociação, sabendo que dispõe do principal ativo na questão climática. Foi possível, e ele já disse, reduzir drasticamente o desmatamento e desenvolver o agro. É preciso fazer com que a preservação da floresta seja um bom negócio também para a população amazônica. Convenham: é preciso que um líder tenha credibilidade para fazer cobranças. Nas suas palavras:
"Vamos provar que é possível promover crescimento econômico e inclusão social tendo a natureza como aliada estratégica, e não mais como inimiga a ser abatida a golpes de tratores e motosserras. Tenho o prazer de informar que logo após nossa vitória na eleição de 30 de outubro, Alemanha e Noruega anunciaram a intenção de reativar o Fundo Amazônia, para financiar medidas de proteção ambiental na maior floresta tropical do mundo. O Fundo dispõe hoje de mais de US$ 500 milhões de dólares, que estão congelados desde 2019, devido à falta de compromisso do governo atual com a proteção da Amazônia. Estamos abertos à cooperação internacional para preservar nossos biomas, seja em forma de investimento ou pesquisa científica. Mas sempre sob a liderança do Brasil, sem jamais renunciarmos à nossa soberania."

FINALMENTE...
Lula sabe, finalmente, que o avanço de políticas públicas, nacionais ou internacionais, dependem da criação de instituições. Para que sua efetivação não fique na dependência do voluntarismo desse ou daquele. Nesses casos, valem mais as construções objetivas -- a criação de grupos de países ou de instituições multilaterais -- do que as disposições subjetivas. Assim, propõe a realização da Cúpula dos Países Membros do Tratado de Cooperação Amazônica e a realização da COP30 no país, em 2025, sinalizando que está disposto a cumprir compromissos. Afirmou:

"Quero aproveitar a ocasião para garantir que o acordo de cooperação entre Brasil, Indonésia e Congo será fortalecido pelo meu governo. Juntos, nossos três países detêm 52% das florestas tropicais primárias remanescentes no planeta. Juntos, trabalharemos contra a destruição de nossas florestas, buscando mecanismos de financiamento sustentável, para deter o avanço do aquecimento global. Quero também propor duas importantes iniciativas, a serem apresentadas formalmente pelo meu governo, que se iniciará no dia primeiro de janeiro de 2023. A primeira iniciativa é a realização da Cúpula dos Países Membros do Tratado de Cooperação Amazônica. Para que Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela possam, pela primeira vez, discutir de forma soberana a promoção do desenvolvimento integrado da região, com inclusão social e responsabilidade climática. A segunda iniciativa é oferecer o Brasil para sediar a COP 30, em 2025. Seremos cada vez mais afirmativos diante do desafio de enfrentar a mudança do clima, alinhados com os compromissos acordados em Paris e orientados pela busca da descarbonização da economia global."

CONCLUO
Assim, ele próprio, na condição de presidente do Brasil, poderá ser cobrado pelos compromissos assumidos. Como ficou evidente, Lula pediu reciprocidade, uma das práticas corriqueiras no chamado "concerto das nações".

O Brasil voltou.

Lula voltou.