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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O evento extremo que matou em São Sebastião foi a desigualdade, não a chuva

Deslizamento de terra na Barra do Sahy, em São Sebastião. É o modelo da desigualdade que mata, não a chuva - André Bastos/G1
Deslizamento de terra na Barra do Sahy, em São Sebastião. É o modelo da desigualdade que mata, não a chuva Imagem: André Bastos/G1

Colunista do UOL

22/02/2023 04h52

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A tragédia que colheu o Litoral Norte de São Paulo é o que se chama tecnicamente de "evento extremo". Isso significa que o sofrimento seria grande ainda que o país e a região fossem exemplos de distribuição de renda e de funcionamento de políticas públicas voltadas para a área social. Ocorre que, além do extremismo das intempéries, certamente agravado pelo desequilíbrio climático, há um outro ainda mais grave: o da desigualdade. Foi o extremismo da desigualdade que matou em São Sebastião, não o da chuva.

Há pouco a fazer no curto e médio prazos contra chuvas torrenciais — no longo, é preciso combater as causas do tal desequilíbrio. Mas corrigir efeitos da desigualdade por intermédio de políticas públicas, bem, essa é tarefa que tem de começar agora. No Litoral Norte e onde quer que a aspiração a uma vida civilizada sofra as mesmas afrontas.

Caiu no Litoral Norte a maior chuva de que se tem notícia no país desde que se fazem as medições. Os especialistas em clima já explicaram que, nas causas, está uma conjunção nem tão corriqueira de fatores. Mas me ocorre perguntar: se, em vez dos mais de 600 mm, fossem 250 mm, as vítimas de agora não estariam expostas a riscos muito semelhantes? Não foi uma das maiores chuvas da Terra a matar dezenas, mas uma das maiores desigualdades da Terra.

É uma pena que os mercados não coloquem preço da reforma urbana. Ela é uma de nossas grandes urgências. Além, se quiserem, de ser geradora de riqueza, de mão de obra, de consumo. A construção civil pode ser um motor importante da economia. Sigamos.

Sim, é a desigualdade que mata. Os mortos de São Sebastião, a maioria na Barra do Sahy, tinham cor, escolaridade e renda que os situavam na base da pirâmide brasileira. Ainda que alguns pudessem até ter renda para morar em áreas menos vulneráveis em São Paulo ou em alguma cidade de porte médio do interior, os seus empregos estão ali — e, pois, dali vem o seu ganho. E se chega ao que interessa.

O MODELO DA TRAGÉDIA
A esmagadora maioria dos brasileiros que ocupam as encostas da Serra do Mar, no Litoral Norte de São Paulo, trabalha para condomínios e casas de luxo que foram sendo construídos em praias badaladas. Muitos, diga-se, migraram para lá para erguer essas construções. E foram ficando porque a região passou a ser um polo de atração de mão de obra: na construção civil, na estrutura de serviços, no trabalho doméstico e na zeladoria das casas.

Frequento o Litoral Norte há mais de 20 anos. Tenho amigos que moram na região e outros que têm casa de veraneio. À medida que as edificações de luxo foram se multiplicando — e há até um fenômeno mais recente de construções menores, voltadas para a classe média —, também se deu a ocupação desordenada do pé e da encosta dos morros à esquerda da Rio-Santos, considerando o sentido rumo ao Litoral. E fenômeno idêntico se verifica em várias outras áreas do país.

A região se torna, assim, um exemplo didático, porque escancarado, do significado da desigualdade, coisa que alguns dos reacionários brasileiros disfarçados de liberais insistem ser irrelevante no equacionamento das nossas desgraças. Há nessas praias do Litoral Norte um microcosmo a ser estudado. Quando se compara com outras áreas do país, saibam, nem se tem por ali a mão de obra mais barata.

Ocorre que os terrenos seguros se tornaram proibitivos mesmo para trabalhadores que têm, às vezes, uma renda que pode chegar a quatro ou cinco salários mínimos — sendo certo que a maioria dos que moram em áreas vulneráveis ganha menos do que isso. Sim, é verdade: também casas e condomínios nos ricos foram invadidos pelas águas do "evento extremo". Mas foram os pobres a morrer.

MINHA CASA MINHA VIDA
O governo federal incluiu a região entre aquelas que terão prioridade para o programa Minha Casa Minha Vida. Desde logo, no entanto, se tem o problema: onde estão os terrenos para a construção dessas residências? Será preciso que as três esferas de governo -- muito especialmente a municipal nesse caso -- encontrem as áreas para abrigar as casas dos trabalhadores pobres. Caso a tragédia não seja esquecida daqui a pouco e se leve adiante o esforço, a reação negativa de endinheirados à eventual proximidade daqueles que trabalham para eles é certa como a luz do dia ou como as nuvens carregadas que ainda ameaçam a região. Podem trabalhar em suas respectivas residências, mas não morar perto. Temos a pior elite do planeta. E não é só.

Há um outro problema gravíssimo em boa parte das praias do Litoral Norte: a falta de tratamento de esgoto. Boa parte das casas de alto padrão, inclusive das áreas mais caras de São Sebastião, contam com fossa séptica. O esgoto das construções irregulares ou em áreas de risco costuma ser jogado sem tratamento nos rios. Assim, a construção de conjuntos habitacionais terá de enfrentar também a dificuldade do saneamento.

REAÇÃO POSITIVA POR ORA
Nesse primeiro momento, a união das três esferas de governo tem se mostrado exemplar -- para o pós-tragédia, reitere-se. Vamos ver como ela avança. Aqui e ali se fala muita bobagem sobre os R$ 2 milhões destinados pela Autoridade Portuária de Santos para as vítimas, como se fosse essa a única ajuda federal. É uma estupidez da sanha do maldizer.

Há muita coisa em curso. Foram deslocados para a região, para citar algumas iniciativas, 374 militares do Exército, com 42 viaturas e 6 aeronaves para atuar em resgate e monitoramento. O navio-patrulha Guarujá, da Marinha, atracou nesta terça no porto de São Sebastião com 40 toneladas de alimentos. Na quinta, será a vez do Navio-Aeródromo Atlântico, que abrigará um hospital de campanha com 300 leitos de enfermaria, alguns de UTI, e especialistas em ortopedia, psiquiatria, traumatologia e clínicos gerais. A embarcação levará 180 fuzileiros, seis helicópteros e mais três embarcações para acesso a áreas isoladas. A Receita Federal doou ainda R$ 11 milhões em produtos apreendidos — roupas, calçados, material de higiene pessoal. A Polícia Federal atua na ajuda às vítimas, e a Polícia Rodoviária Federal colabora no monitoramento da estrada. Enviaram-se antenas transportáveis para auxílio da comunicação via satélite, Unidades Móveis de Tratamento de Água e 4.500 kits com 25 medicamentos e 13 insumos para atendimento de emergência.

ESFORÇO GIGANTESCO
O esforço para reconstruir a infraestrutura da região será gigantesco. Mas é muito importante que se tenha claro que as coisas não podem voltar ao antigo normal. É preciso retirar as pessoas das áreas de risco e impedir novas ocupações irregulares. Não é tarefa corriqueira. O primeiro desafio no médio prazo, insista-se, é encontrar os terrenos para construir moradias do Minha Casa Minha Vida. E desde já é preciso que o governo do Estado faça um plano de longo prazo para responder ao desafio da saneamento básico.

O Litoral Norte de São Paulo é um caso que chama a nossa atenção pela dimensão e porque é exemplar de um tipo de relação social e econômica obviamente viciosa. Mas é só um emblema de um mau Brasil em que milhões de pobres vivem sob risco. As coisas não se resolvem do dia a noite, eu sei. Muita gente ainda morrerá soterrada país afora. É absurdo assim. É fundamental que as respostas comecem a ser dadas já. O país não pode se esquecer do que aconteceu tão logo o sol volte a brilhar. Porque, a ser assim, será apenas a luz que prenuncia a próxima tragédia.