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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Desconstruindo ata do BC, que sequestra o país. Fica assim, Lira e Pacheco?

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

29/03/2023 04h20

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O Banco Central autônomo divulgou a ata do Copom. É a mais política de sua história. A autonomia, consta, tem o objetivo de blindar a "autoridade monetária" da influência... política. Se as lideranças do Congresso, incluindo suas respectivas presidências, e os representantes da economia real continuarem em silêncio obsequioso — como, aliás, recomendam, com ameaças, os valentes subscritores daquela estrovenga —, o país caminha para a recessão. E o abismo nos contempla. Vamos desconstruir o que é uma peça de chantagem. O artigo é longo.

Essa gente não cessa de me comover com aquilo a que alguns chamam, de modo impróprio, de "ortodoxia". Um pouquinho de etimologia. "Ortodoxo" vem do grego "orthós": diz-se do que é "reto, direito, correto, normal, justo, levantado, teso, direto". E vai por aí. "Dóksos" deriva de "dóksa": opinião, juízo, crença. Assim, um ortodoxo, na origem da palavra, é aquele que expressa as opiniões corretas. Na vida em sociedade, pode designar tanto a pessoa apegada a princípios como a intolerante com tudo o que lhe parece novidade ou estranho a seu sistema de valores.

O Globo parece ter dado o título correto para um resumo que fez de uma carta de sequestro: "Os cinco recados do Banco Central ao governo Lula". Com efeito, é o que está lá. Confesso que considero o procedimento bem pouco "ortodoxo". Para apelar a uma metáfora oriunda do mundo animal, é o cachorro que balança o rabo, não o rabo, o cachorro.

Se o BC pode mandar recados ao governo — e, com efeito, mandou —, então inicio já a minha campanha: eleição direta para os membros do Copom. E estes, uma vez eleitos, indicam o presidente da República, que será um administrador das carências do povaréu. "Errado, Reinaldo, a autonomia existe justamente para que ele seja imune a pressões". Pergunta óbvia de resposta idem: "pressões de quem?".

Fernando Haddad, ministro da Fazenda, sugeriu que o troço veio um tantinho melhor do que aquele primeiro comunicado malcriado. Há na manifestação de agora um discreto reconhecimento de que o governo se empenha por um marco fiscal. Entendo que Haddad não queira crispar o ambiente. Em seu lugar, eu faria o mesmo. Mas estou no meu lugar. E noto que é o comitê a tratar o governo, como escreveu Fernando Pessoa, "como um cão tolerado pela gerência".

O comitê engrolou no Item 18 considerações lisonjeiras e clementes com uma nova regra fiscal, que até pode, um dia, quem sabe?, "levar a um processo desinflacionário mais benigno através de seu efeito no canal de expectativas". Essa linguagem quase etérea disfarça a fúria carnívora. Reconhece, e isso pode ter deixado Haddad um pouquinho feliz, que a reoneração dos combustíveis contribui para atenuar "os estímulos fiscais sobre a demanda, reduzindo o risco de alta sobre a inflação no curto prazo."

Para mim, a novidade ali anunciada é haver uma demanda a ser desaquecida. Então ela está aquecida??? É tudo muito impressionante.

No mais, dizem, a decisão de manter os estratosféricos 13,75% ao ano nada tem a ver com o fato de não se conhecer ainda o tal arcabouço. Literalmente:
"O Copom enfatizou que não há relação mecânica entre a convergência de inflação e a apresentação do arcabouço fiscal, uma vez que a primeira segue condicional à reação das expectativas de inflação, às projeções da dívida pública e aos preços de ativos."

Pouco importa o que apresente o governo, nada há que possa mudar o coração dos faraós. Assim, era mesmo papo-furado a história de que se manteve inalterada a Selic em razão do adiamento — que não houve — da proposta fiscal.

UM RECADO AO BNDES
Os petulantes mandam ainda recados ao BNDES -- que, parece-me, na sua concepção, tem de ser extinto. Atenção! Esses heróis de si mesmos voltam a ameaçar o Brasil com uma dose maior do veneno. Está lá no item 8, a saber:

"O Comitê novamente avaliou a possibilidade de incorporar alguma elevação em sua estimativa de taxa neutra de juros, em direção ao movimento observado nas expectativas para prazos mais longos extraídas da pesquisa Focus."

No seguinte, atrelam tal ameaça àquilo que eventualmente o BNDES venha a fazer. A politização do documento é evidente. Trata-se de uma advertência ao banco de fomento, que promoveu recentemente um seminário em que se debateram, entre outros temas, os juros. Escrevem os donos do Brasil:
"Ao avaliar os fatores que poderiam levar à materialização de cenário alternativo caracterizado por uma taxa de juros neutra mais elevada, enfatizou-se a possível adoção de políticas parafiscais expansionistas, que têm o potencial de elevar a taxa neutra e diminuir a potência da política monetária, como já observado em comunicações anteriores do Comitê."

É uma ameaça. O BNDES desembolsou em 2022 míseros R$ 98 bilhões, praticamente sem subsídio — coisa de ridículo 1% do PIB. A atual direção espera dobrar esse valor até 2026. Afirmar que tal montante, ainda que dobrado fosse agora, estimularia a inflação e interferiria numa política de juros de um mercado de crédito que gira algo em torno de R$ 1,5 trilhão ao ano é conversa de fanáticos ou de pilantras para idiotas. Tenham a coragem de defender explicitamente o fim do BNDES. Mas preferem, covardemente, tentar miná-lo.

META DE INFLAÇÃO
Metas de inflação? Não tem conversa! Estão mantidas e pronto! Lê-se por aí como um recado a Lula. É mesmo? Estou enganado ou três grandes "Duzmercaduz" defenderam a mudança. Reproduzo trecho de reportagem do UOL de 15 de fevereiro:
"O sócio-fundador da SPX Capital, Rogério Xavier, afirmou nesta quarta-feira não ver problema em mudança na meta de inflação, argumentando que ela está 'completamente errada', em avaliação acompanhada pelo sócio-fundador da Verde Asset Management, Luis Stuhlberger, e pelo sócio-fundador da JGP, André Jakurski. Xavier argumentou que a meta deste ano foi acertada em meados de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, em um cenário bastante diferente, e que agora ela ficou 'inalcançável' (...) Era um cenário diferente, visto a posteriori (a meta) está muito justa, muito ambiciosa para a gente alcançar... Então eu vou e altero. Não tem nada de errado nisso", afirmou Xavier, na BTG Pactual CEO Conference 2023, em São Paulo.'O que adianta eu dizer que vou buscar 3,25% e fazer 6%.'"

No item 23, os donos do Brasil e do poder escrevem:
"O Comitê avalia que a credibilidade das metas perseguidas é um ingrediente fundamental do regime de metas de inflação e contribui para o bom funcionamento do canal de expectativas, tornando a desinflação mais veloz e menos custosa. Nesse sentido, decisões que induzam uma reancoragem das expectativas reduziriam o custo desinflacionário e as incertezas associados a esse processo."

Traduzindo o mistério desses deuses olímpicos em linguagem humana:
"Se vocês pararem de criticar as nossas decisões e as metas, talvez o juro venha a cair um dia".

Ou, em termos que evocam os direitos à livre expressão, garantido pelo Artigo 5º da Constituição:
"Todos estão sujeitos a críticas no Brasil, menos o BC. Quer dizer, vocês até podem criticar, mas aí a gente retalia".

É lamentável que documento dessa natureza traga tal aberração. Mais lamentável ainda é ver parte do jornalismo apoiando essa particularíssima forma de censura e de terrorismo econômico. O debate foi sequestrado junto com o país.

SERENIDADE
Os atrevidos resolveram ser o nosso Rivotril. O crédito está secando, as empresas estão quebrando, os juros reais estão em 7%, mas eles pedem calma e "serenidade". Essa palavra, note-se, aparece duas vezes: nos itens 15 e 24. Nesse caso, a saber:

"O Copom enfatizou que a execução da política monetária, neste momento, requer serenidade e paciência para incorporar as defasagens inerentes ao controle da inflação através da taxa de juros e, assim, atingir os objetivos no horizonte relevante de política monetária."

Sentem, fiquem calmos, à espera dos bárbaros.

E aí, no item 25, vem um trecho que mistura cinismo com truculência, vertida em linguagem amigável:
"Por fim, o Comitê reforçou que a harmonia entre as políticas monetária e fiscal reduz distorções, diminui a incerteza, facilita o processo de desinflação e fomenta o pleno emprego ao longo do tempo. Nesse aspecto, o Comitê reforça a importância de que a concessão de crédito, público e privado, se mantenha com taxas competitivas e sensíveis à taxa básica de juros."

Eis aí o que pretendem para o Brasil e quais são seus anseios com a política monetária. Não arredam pé. E convidam o governo a se harmonizar com eles, por meio da política fiscal. Vale dizer: este que de adapte. Isso daria aos sacerdotes a última palavra também em política fiscal. Ou eles elevam a taxa de juros. Ponto.

TAREFAS DO BC
Há humoristas na equipe. Explicitamente, eles se metem no debate político, ecoam pelo avesso as críticas de Lula e resolvem assegurar que estão cumprindo a Lei 179, que garante a autonomia. É mentira. Escrevem no item 26:

"Sem prejuízo de seu objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços, essa decisão também implica suavização das flutuações do nível de atividade econômica e fomento do pleno emprego."

É mesmo?

Vou aqui reproduzir trechos em que os fortes do Copom revelam quais são seus reais objetivos. O Item 4 é espetacular:
"No âmbito doméstico, o conjunto de indicadores divulgados desde a última reunião do Copom segue corroborando o cenário de desaceleração do crescimento esperado pelo Comitê. Observa-se moderação nos indicadores coincidentes de atividade e o mercado de crédito também tem apresentado desaceleração na margem. O mercado de trabalho, que surpreendeu positivamente ao longo de 2022, continua mostrando sinais de moderação, com relativa estabilidade na taxa de desemprego, proveniente de recuos na população ocupada e na força de trabalho."

É possível que muitos não tenham entendido, mas o BC está afirmando que, para ele, ser bem-sucedido implica:
- desacelerar o crescimento:
- contrair o mercado de crédito;
- derrubar o mercado de trabalho.

É uma confissão. Embora jurem seguir o que dispõe a Lei Complementar 179, está tudo claro: eles se preocupam exclusivamente com a redução da inflação, tratada, como resta evidente, como se fosse de demanda.

Segundo o tal Boletim Focus, a economia já vai crescer menos de 1% neste ano. A ata deixa claro que, se preciso, o BC fabrica uma recessão sem pestanejar. E sem se ocupar das consequências sociais.

Houvesse alguma dúvida de que a pretensão é desacelerar ainda mais uma economia já à beira da recessão, fiquem com o item 13, na íntegra:
"Os dados de atividade no Brasil seguem indicando um ritmo de crescimento mais moderado na margem, e os dados de emprego sugerem moderação. Ressaltou-se que após um período de forte recuperação nos dois últimos anos, iniciou-se um processo de desaceleração do crescimento no setor de bens duráveis, que havia sido particularmente impulsionado na pandemia, e que é mais sensível à política de juros. A desaceleração se espalhou para o setor de bens não-duráveis e, posteriormente, para o setor de serviços, ainda que de forma mais branda. O Copom segue avaliando que a desaceleração econômica em curso é necessária para garantir a convergência da inflação para suas metas, particularmente após período prolongado de inflação acima das metas. Por fim, notou-se que as perspectivas de crescimento econômico não mudaram significativamente no período recente."

A ordem é crescimento ainda menor.

O BRASIL E O MUNDO
No item 3, quando estão preparando a litania de suposta ortodoxia, escrevem:

"O processo de normalização da política monetária prossegue na direção de taxas restritivas de forma sincronizada entre países. Em várias economias emergentes, os ciclos de aperto chegam a uma pausa ou sugerem proximidade de seu fim. De toda forma, a sinalização majoritária entre as autoridades monetárias é de um período prolongado de juros elevados para combater as pressões inflacionárias, o que requer maior cautela na condução das políticas econômicas também por parte de países emergentes."

A questão volta no item 10:
"O Comitê segue avaliando que o processo de desinflação global, especialmente no que se refere aos indicadores de inflação subjacente, é desafiador e possivelmente ocorrerá de forma mais lenta do que usualmente observado, na medida em que a inflação está disseminada no segmento de serviços. Nesse contexto, a redução das pressões inflacionárias continua a requerer o compromisso e a determinação dos bancos centrais com o controle da inflação, através de um aperto de condições financeiras mais prolongado. Tal determinação, ainda que com possível impacto sobre preços de ativos no curto prazo, contribui para um processo desinflacionário global mais crível e duradouro."

Estão a nos dizer que a elevação das taxas não é um fenômeno brasileiro. Sei... Ocorre que, nos EUA, na Zona do Euro e no Reino Unido, por exemplo, elas são negativas. No Brasil, estão em 7% positivos, com desemprego em 8%. E este só não é maior em razão da informalidade e da precarização do trabalho. Anotem: o desemprego nos EUA é de 3,5%. Entre nós, os bárbaros se jactam de terem conseguido, com a sua política, desacelerar o ritmo do emprego.

Está tudo dito. Essa é a forma que a ortodoxia tomou entre nós. Tratam a inflação que temos como se fosse de demanda, deixam claro que nada muda, anunciam que qualquer crítica pode concorrer para o pior e ainda ousam botar uma canga no BNDES.

SEQUESTRO SEM RESGATE
Se indústria, comércio e serviços não reagirem, por intermédio de suas entidades de classe, e se Câmara e Senado se quedarem inermes, os donos do nosso destino empurram o país para o caos com a serenidade dos fanáticos.

Com a palavra, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, presidentes, respectivamente, da Câmara e do Senado e entusiastas da autonomia. E notem: não adianta falar em "marco fiscal" para inverter curva de juros. Eles mesmo avisam que isso, agora e por um bom tempo, não tem a menor importância. O abismo nos contempla.

No último item, volta a ameaça:
"O Comitê enfatiza que os passos futuros da política monetária poderão ser ajustados e não hesitará em retomar o ciclo de ajuste caso o processo de desinflação não transcorra como esperado."

Reitero: essa é a ata mais política da história do Copom. E foi redigida por diretores de um BC autônomo. Segundo consta, o objetivo da autonomia é blindá-lo da influência... política. Trata-se de uma carta de sequestro sem nem pedido de resgate.