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Bolsonaro depõe sobre joias; é o menor dos crimes; eis os que rendem cadeia
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Está previsto para esta quarta o depoimento presencial do "Mito" à Polícia Federal. O escândalo é de conhecimento público recente. No dia 3 de março, o Estadão publicou reportagem de Adriana Fernandes e André Borges com o seguinte título: "Governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente colar e brincos de diamante de R$ 16,5 milhões para Michelle". Ficamos sabendo, na sequência, que aquele era apenas um de três conjuntos que o então presidente recebeu do governo saudita por razões até agora misteriosas.
Nada seguiu os trâmites normais, certo? O conjunto feminino só ficou retido na alfândega porque um sargento da comitiva do então ministro Bento Albuquerque teve a bagagem vistoriada. Era uma tentativa de burlar a lei. E burlada foi. Naquele mesmo dia, por intermédio da mesma turma, uma caixa com joias masculinas entrou no país sem nenhuma declaração. E o Capitão da Humildade já havia recebido um outro. Tudo foi devolvido por determinação do TCU e entregue para a guarda da Caixa Econômica Federal.
Vejam que coisa: em que pese o valor fabuloso dos mimos, beirando os R$ 20 milhões, o possível peculato — "Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio" — é, entendo, o menos grave dos crimes pelos quais o ex-presidente e investigado. Não quer dizer que não seja escandaloso. O trecho que vai entre aspas é transcrição do Artigo 312 do Código Penal, e a pena, se houver condenação, varia de dois a 12 anos de cadeia, além de multa. Há uma outra imputação possível: "descaminho", assim caracterizado no caput do Artigo 334 do CP: "Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria". A pena varia de um a quatro anos de reclusão.
A situação do ex-presidente não é boa. Fosse sua intenção entregar ao acervo público os presentes — e o fato de ter ficado com duas das caixas não autoriza ninguém a fazer tal suposição —, então que se procedesse a devida declaração. O mesmo se diga sobre o terceiro lote, o mais caro, que foi retido na Alfândega. O caso só existe porque nem se declararam os mimos milionários como futuro patrimônio público nem se fez o registro de bem pessoal, hipótese em que se deveria pagar o imposto. Qualquer que seja a versão do ex-presidente, não parece que tenha como parar de pé.
As pessoas que atuaram para a entrada ilegal das caixas no país podem também responder por "facilitação de descaminho" (Artigo 318-CP). Ao próprio imbrochável e a quantos tenham atuado para liberar a caixa retida, é possível imputar o crime de "advocacia administrativa" (Artigo 321-CP). A PF apura ainda se tanta generosidade do governo saudita com o então presidente foi uma compensação por eventual ato beneficiado o governo, autoridades ou indivíduos daquele país. Aí estaria caracterizada "corrupção passiva" (Artigo 317-CP).
UMA CERTA IRONIA. OU TODOS OS INQUÉRITOS
A coisa tem lá seu aspecto irônico. O Defensor da Família dos Bons Costumes já era réu no Supremo por apologia do estupro e injúria em decorrência das barbaridades que disse à deputada Maria do Rosário. Ressalvando não ser estuprador (quanta nobreza de caráter!) disse que não a estupraria, se fosse, porque ela não merecia. A estupidez foi dita pela primeira vez em 2003 e foi repetida por ele em 2014. No Congresso. Nessa segunda vez, não contente, concedeu uma entrevista e ainda acrescentou que não praticaria o estupro porque, disse, ela era também "muito feia". Se já não migrou, esse caso deve ir para a primeira instância. Insisto: ele já é réu.
E há mais cinco inquéritos, todos sobre crimes de extrema gravidade. Quatro deles foram abertos ainda no curso do mandato, e o mais recente, o 4.921, depois de ter deixado a Presidência. Este último se ocupada dos ataques golpistas, com práticas similares ao terrorismo, contra as respectivas sedes dos Três Poderes no dia 8 de janeiro. A inclusão de Bolsonaro se deu a pedido da PGR.
O ex-presidente é um dos alvos do Inquérito 4.781, que abriu a fila dos procedimentos instaurados em defesa da democracia e do estado de direito. É o tal "das fake News", aberto de ofício por Dias Toffoli, então presidente no STF, no dia 14 de março de 2019, com dois meses e meio de governo. Tem como alvo a indústria de notícias falsas cujo alvo era e é o Supremo.
Há o 4.831, originalmente o mais fraco de todos, aberto a partir de acusação feita por Sérgio Moro, ao deixar o Ministério da Justiça, segundo quem seu ex-chefe fez interferências indevidas na Polícia Federal, atendendo a seus próprios interesses. Digo que era o mais fraco porque, quando lançou o petardo, o ex-juiz e agora senador nada tinha de objetivo, além da mágoa. O então presidente, contudo, no curso do mandato, foi se encarregando de fornecer elementos novos a uma acusação originalmente anêmica. Há indícios, por exemplo, de que seu ministro da Justiça, Anderson Torres, tentou usar a PF para criar dificuldades para eleitores de Lula no dia do segundo turno.
Outro, o 4.888, trata de uma fala do Homiziado Retornado relacionando a vacina contra a Covid-19 à Aids. A informação falsa foi tonitruada por esse grande líder nas redes sociais, ao vivo, durante uma de suas "livres", em outubro de 2021. O 4.878 cuida do vazamento, perpetrado pelo golpista, de investigação sigilosa sobre ataque hacker ao sistema do TSE, o que não comprometia as urnas, diga-se. Usou o material para sugerir que havia vulnerabilidade no sistema eletrônico de votação. Chegou a ameaçar com a suspensão do pleito.
PERDA DE CARGO E FORO
Em regra, esses casos todos deveriam todos sair do STF e migrar para a primeira instância, certo? Mais ou menos: se houver, por exemplo, pessoas com foro por prerrogativa de função entre os alvos, Moraes, relator dos cinco, pode puxar para si a competência.
E que se note: fala-se aqui dos crimes comuns. Há 16 processos no TSE sobre os eleitorais. O mais avançado já está na fase da apresentação de alegações finais, pode ser julgado pelo tribunal até o fim deste mês e resultar na inelegibilidade de bruto.
ENCERRO
O imbróglio das joias, apesar do valor ou por causa dele, tem certo acento folclórico se corrupção passiva não for. O "capitão", que sempre fez marketing de sua suposta simplicidade e de seu desapego das coisas deste mundo -- preocupado apenas em nos proteger dos comunistas -- demonstrou, tudo comprovado, a sua vocação concupiscente.
Nove outras pessoas devem ser ouvidas simultaneamente. Entre elas estão o tenente-coronel Mauro Cid, seu ex-ajudante de ordens e faz-tudo; Júlio César Viera, ex-secretário da Receita, e Marcelo Câmara, ex-assessor especial.
É pouco provável que esse caso leve o ex-presidente à cadeia. Já os outros, muito especialmente os inquéritos 4.781 e 4.921, marcam o encontro de Bolsonaro com o xilindró.