Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Desprivatizáveis de Lula e delinquências do bolsonarismo como um saudosismo
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É mesmo do balacobaco. Os textos e declarações das viúvas das privatizações que Jair Bolsonaro não fez, todas chorosas porque Lula retirou sete empresas do Plano Nacional de Desestatização (PND) e outras três do PPI (Programa de Parcerias de Investimento), são meros panfletos ideológicos. Não lhes falta apenas substância. Faltam também a novidade — afinal, por que isso seria notícia? — e apego aos fatos. Ademais, será preciso lembrar aqui o que "Uzmercáduz", junto com lobistas na imprensa, vinham considerando "virtudes" em matéria de privatização.
Quem está surpreso? Lula não está enganando ninguém. Anunciou, ainda na campanha eleitoral, que faria isso se vencesse, como lembrei nesta sexta no programa "O É da Coisa", na BandNews FM. E ele venceu. Jair Bolsonaro, em companhia de Paulo Guedes, cometeu estelionato eleitoral. Era ele o "privatizador", não? Lembram-se da prometida (por Guedes) arrecadação de R$ 1 trilhão só passando estatais nos cobres?. Tonitruou esse delírio como se fizesse algum sentido.
A propósito: um governo supostamente privatista teve quatro anos para levar adiante sua promessa. Conseguiu, no máximo, aquele arranjo cartorial com a Eletrobras, que, convenham, nem privatização é. Da forma como tudo ficou, o que se tem, na prática, é apropriação de dinheiro público por nababos. Se aquilo é "desestatização", certamente concorre ao prêmio de a pior da Terra. Inventaram o passeio político-turístico dos gasodutos, que terá de chegar a pontos do país onde inexiste suprimento do combustível para alimentar termelétricas. Como não se vai consumir ali a energia gerada, então será preciso construir linhas de transmissão para os centros consumidores.
Quem vai pagar essa farra? O dinheiro público. Privatização? Capitalização? Não! É caso de polícia mesmo. E ai de quem ousar, e Lula já ousou (até agora, não conseguiram impor o silêncio obsequioso ao presidente), criticar aquele troço. Até 2036, gente que entende do setor avalia que será preciso investir R$ 52 bilhões de dinheiro público. Em regra, sou favorável a privatizações se forem o melhor para o país. Não é ideologia. Nem sempre são. Sou contrário, como é o caso, à privatização do próprio Estado, entregando-o à gerência e administração de nababos. Isso é assalto ao erário. Eis a privatização de Bolsonaro. Favor não confundi-la com concessão de serviços públicos, que é outra coisa, e terá continuidade no governo Lula. Voltemos à lista de estatais.
Alguém esperava mesmo que Lula fosse dar consequência às privatizações que Bolsonaro não fez? Foi esse o viés político que venceu nas urnas? Exceção feita aos Correios e ao Serpro, duvido um tanto que houvesse interesse real pelas demais empresas. Ademais, olhem o ambiente macroeconômico aqui e em toda parte. Um tiquinho só de honestidade intelectual obriga a reconhecer a evidência que, mundo afora, o que inclui os EUA, aumenta a presença do Estado, quando menos, no controle da economia — quando mais, os cofres públicos são abertos para cobrir rombos provocados por pistoleiros.
Não escrevo para demonstrar ser preferível que tudo continue sob controle do Estado. Meus pontos são outros. Não é possível alegar surpresa com o fato de Lula ter retirado as tais empresas da lista. E também é preciso eliminar o pressuposto de que o arranjo em favor da privatização resultaria melhor do que aquilo que se tem hoje. Governo e Congresso — sim, este participou ativamente — conseguiram fazer da capitalização da Eletrobras um monstrengo a ser execrado, não seguido.
O CASO PETROBRAS E DO QUE GOSTAM "UZMERCÁDUZ"
Sejamos claros: as mãos que movem a pena de alguns valentes prosélitos queriam mesmo a Petrobras. Guedes não anteviu a suposta obsolescência da empresa por acaso. Lembram-se disto? Em 25 de outubro de 2021, com aquele seu "jeito estúpido de ser" (by Isolda e Milton Carlos, na voz de Roberto Carlos), afirmou a seguinte preciosidade ao defender a privatização da Petrobras:
"O presidente Bolsonaro falou que estudaria o que ia fazer com a Petrobras. Afinal de contas, se estamos com crise hídrica e tivemos escândalo de corrupção, são 30 a 40 anos de monopólio no setor elétrico e no setor de petróleo. E, se daqui a 10 ou 20 anos, o mundo inteiro migra para hidrogênio e energia nuclear, abandonando o combustível fóssil. A Petrobras vai valer zero daqui a 30 anos. E deixamos o petróleo lá embaixo com uma placa de monopólio estatal em cima".
É realmente muito impressionante. Vamos ver.
1: a resposta ao setor elétrico, como se sabe, ele deu fazendo o que fez com a Eletrobras;
2: a crise hídrica de 2021 já não existe em 2023;
3: não haverá o abandono dos hidrocarbonetos em prazo tão curto, embora seja preciso investir em energia limpa e segura;
4: quem é que propõe vender um dos maiores ativos do Estado brasileiro anunciando que, em 30 anos, aquele bem não valerá nada? Trinta anos, quando se trata de valores de tal grandeza, correspondem a uma semana. Ele queria privatizar a Petrobras ou entregá-la?;
5: não existe monopólio estatal de produção e refino de petróleo desde a lei 9.478, de 6 de agosto de 1997;
6: a empresa que, segundo aquele gênio, "vai valer zero daqui a 30 anos" distribuiu US$ 21,7 bilhões de dividendos no ano passado (R$ 109,368 bilhões pelo câmbio de sexta). O número é da gestora de recursos Janus Henderson. Calma! Quando se considera o crescimento em relação ao ano anterior, ele foi de 138% EM DÓLARES -- "de muito longe", observa a gestora, "a maior alta de dividendos do mundo";
7: eis Guedes vendo o mundo: a empresa que ele queria vender como sucata distribuiu os segundos dividendos do mundo, com a maior elevação do planeta entre um ano e outro. Como não é ingênuo, sabia o que dizia e em benefício de quem.
O MODO BOLSONARO-GUEDES DE LIDAR COM ESTATAIS E ELEIÇÕES
Como a paridade de preços de importação, com o consequente aumento de combustíveis, elevava o risco de derrota no primeiro turno, que resposta deu a dupla de valentes para os combustíveis? Manteve-se a paridade, mas, por meio de PEC inconstitucional (uma delas), zeraram-se os impostos federais até dezembro, golpeando a arrecadação federal, e se tungou o ICMS dos Estados. Há mais.
Como o corte de arrecadação federal abria um rombo no caixa, Bolsonaro mudou a lei dos dividendos da Petrobras para reduzir o estrago provocado pela renúncia fiscal. Foi bom para o governo, claro!, um acionista majoritário, mas também para os outros. A conjunção de venda de ativos (desinvestimento), da redução de investimentos propriamente e de elevação do preço do petróleo fez a festa. Obviamente, "Uzmercáduz" não reclamaram. Não é que gostem de privatização de estatais. Gostam mesmo é da privatização do Estado.
Junto com o processo de aprovação da ilegal PEC dos Combustíveis, Guedes meteu no Ministério das Minas e Energia o incrível (e como!) Adolfo Sachsida, que anunciou que Petrobras e Pré-Sal entrariam na lista de privatizações. Disse com certo ar de solenidade no dia 11 de maio do ano passado, num ridículo anúncio oficial:
"Meu primeiro ato como ministro é solicitar ao ministro [da Economia] Paulo Guedes, presidente do Conselho do PPI [Programa de Parcerias para Investimentos], que ele leve a inclusão da PPSA no PND [Programa Nacional de Desestatização], para avaliar as alternativas para sua desestatização. Solicito também o início dos estudos tendentes à proposição das alterações legislativas necessárias à desestatização da Petrobras"
Querem que eu sintetize o modo do governo anterior de lidar com as estatais? Ao mesmo tempo em que a Petrobras virou a teta generosa para alimentar sandices — não tiveram a coragem de mexer com a paridade de preços, mas enfiaram goela abaixo do país uma PEC ilegal —, o ministro da Economia anunciava que, logo, logo, ela não prestaria para nada. Desinvestimento e falta de investimento serviram para bombar os dividendos, em óbvio prejuízo do país. E a intenção de privatizá-la veio à esteira da indignação popular com o preço dos combustíveis, como se isso decorresse do fato de que a União é acionista majoritária da Petrobras. Ora, sem mudança da paridade, se inteiramente privada fosse a Petrobras, seriam outros os preços? Aliás, um dos pilares da defesa do injustificável — o valor do combustível na bomba — era justamente a defesa do interesse dos acionistas.
Não sei se sabem, mas aquela delinquência de Guedes sobre a extinção da Petrobras revela ignorância (ou má-fé) sobre o Estatuto da Petrobras. Sim, Há um. Transcrevo o Artigo 3º:
"Art. 3º- A Companhia tem como objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, além das atividades vinculadas à energia, podendo promover a pesquisa, o desenvolvimento, a produção, o transporte, a distribuição e a comercialização de todas as formas de energia, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins."
A Petrobras pode, se quiser, investir em qualquer tipo de energia, inclusive a limpa. E poucas empresas — quem sabe nenhuma — reúnem tantas condições de fazê-lo. Mas aí precisamos de gente preocupada com a segurança energética do país, em vez de ficar produzindo delinquências ao sabor da necessidade da súcia que havia se apoderado do Estado brasileiro.
ENCERRO
Comecei o texto tratando das empresas que foram retiradas da lista de privatizáveis, o que nem deveria ter sido notícia em razão da obviedade, e usei dois casos de uso de empresas públicas para atender a urgências políticas e a interesses de cartórios privados.
O absurdo está em considerar que a decisão de não privatizar — anunciada em campanha em caso de vitória — é um retrocesso. Como se o padrão esperado pelos "Mercáduz" — aquele que se viu no governo Bolsonaro — fosse exemplo de virtude. Lamentavelmente, a quase totalidade da imprensa cai na conversa, vivendo um momento notável em que já não se distingue dos lobbies.