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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Arcabouço - Governo vence, e apocalipse não vem. Pterodáctilos, PSOL e Kant

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

24/05/2023 04h58

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Pois é... O texto-base do arcabouço fiscal foi aprovado na Câmara por 373 votos a 108, bem acima dos 257, a maioria absoluta, necessários para uma Lei Complementar. Quatro destaques ficaram para esta quarta, mas nada que mude substancialmente a proposta. Não se espera grande dificuldade no Senado. E, vejam vocês!, o Apocalipse não veio, o que não quer dizer que não se possa continuar a anunciá-lo. Convenham: se o fim dos tempos não seduzisse as mentalidades, nem haveria religiões. E, por óbvio, estas só existem porque o dito-cujo nunca vem, certo? Assim, só se prega o fim do mundo porque, de fato, não se acredita no fim do mundo. Mas o tema faz a fama dos profetas.

O texto costurado por Cláudio Cajado (PP-BA), o relator, não é assim tão diferente daquele proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que contou com a anuência de Lula. "Ah, mas o PT criticou a proposta ao longo da tramitação"... Antigamente, se diria: "Quanta tinta se gastou com isso inutilmente!" Hoje, nem isso. O partido deu 66 dos seus 68 votos pela aprovação. Dois não votaram — e não deve ter sido por rebeldia. Já o PSOL, que integra a base, entregou 12 dos seus 13 ao "não" — Luíza Erundina (SP) se ausentou. O PL de Jair Bolsonaro, com 99 parlamentares, cedeu 30 ao placar elástico em favor do governo.

Isso quer dizer que Lula pode contar com esse número folgado, que aprovaria emendas constitucionais com larga margem? Afinal, para tanto, são necessários 308 votos. Não necessariamente. Mas também não é o contrário.

O arcabouço não enfrentou grande resistência no Congresso também porque oposição ao governo Lula está desorganizada, convenham. Parte importante orbita em torno de Jair Bolsonaro, que não consegue liderar coisa nenhuma. Passa boa parte do tempo se ocupando de questões policiais.

De todo modo, o texto sofreu uma oposição severa de parte considerável do que antes se chamava "grande imprensa" — e a extrema-direita mitômana se encarregou de difamá-lo nas redes. E aqui volto ao Apocalipse: os ditos "analistas" de mercado chegaram a antever uma trajetória explosiva para a dívida, o que motivou editoriais furibundos.

Na terça-feira, em seminário na Folha, o insuspeito de heterodoxia Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, afirmou: "A gente, olhando a reação do mercado, entende que o mercado olha que o arcabouço foi um grande esforço. Acho que o ministro Haddad trabalhou muito duro (...). Eliminou completamente esse risco de a dívida sair simplesmente de controle e tem uma preocupação com a dinâmica entre gastos e receitas".

Pronto. O mestre falou! Agora é hora de vender apocalipses menores... Afinal, é preciso alimentar o "culto" que assegura que o governo está indo para o brejo.

Uma nota: refiro-me, acima, ao que chamam por aí de "heterodoxia" — com alguma frequência, designa a preocupação com os pobres. Apegando-me apenas ao sentido da palavra, é evidente que acho bastante "heterodoxo" o país ter juros reais de quase 8%, os mais altos do mundo, embora inexista um só fundamento macroeconômico que justifique a sandice. Adiante.

O COMEÇO
Lembro que esse arcabouço começou a ser desenhado lá na PEC da Transição, que também mobilizou todos os deuses -- ou capetas -- do financismo furioso. E, no entanto, aquele texto foi aprovado, o déficit não explodiu, o Brasil não acabou nem está em vias de. E se terá um novo modelo de equilíbrio fiscal ainda no primeiro semestre. A tão amaldiçoada PEC da Transição serviu, por exemplo, para recriar o Minha Casa Minha Vida, o Mais Médicos e ampliar os benefícios do Bolsa Família. Pobres...

"Mas você chegou a indagar, Reinaldo, se, afinal, essa é base do governo?" A minha resposta é esta: descontados os 12 votos do PSOL e um da Rede, todos contrários ao PL do arcabouço, dá para dizer que, com carteza, a oposição incondicional e, se preciso, truculenta, reúne ao menos 95 parlamentares. Estão na Câmara para enfrentar o "lulo-petismo" como dizem, não importa o que faça. Se desconfiarem que a proposta é boa, pior ainda. Se o presidente fizesse chover maná, denunciariam o assistencialismo. Nesse grupo, não está, por exemplo, o Republicanos. Conta com 42 deputados e não tem cargo na Esplanada: três se ausentaram, e 5 votaram contra. Os demais — 34 — ficaram com o texto proposto.

Nunca foi segredo para ninguém que o petista Lula se elegeu tendo o Congresso mais conservador da história, com fatia, e não é pequena, francamente reacionária. Vejam lá a pantomima da CPI do MST. Não foram poucos os que anteviram, depois do primeiro turno, que a ingovernabilidade aguardava Lula. E, no entanto, eis aí o arcabouço.

"Ah, mas e a derrota de trechos (apenas trechos!) dos decretos sobre o marco do saneamento?" Tratou-se de uma maximização do episódio, que, ademais, foi mal conduzido pelo governo, embora a iniciativa esteja, entendo, essencialmente certa do mérito. Mais uma vez, o "mercadismo colunístico" fez mais barulho do que seria razoável.

"Então o governo terá vida fácil no Congresso?"

Não será fácil nunca! O país elegeu um governo progressista e um Congresso majoritariamente conservador, com uma fatia considerável de pterodáctilos ideológicos. E eu me refiro ao primitivismo das convicções, não à idade dos convictos. Há seres pré-pacto civilizatório ali que mal abandonaram os cueiros.

O fato é que se trata, sim, de uma vitória do governo Lula. O Apocalipse fica adiado. Mas os apocalípticos continuarão a fazer antevisões escatológicas.

PS: Acho, sim, que o PSOL fez mal em votar contra o PLC. Mas já passei da idade de misturar as estações. Uma coisa é se opor ao texto, como fez a legenda, porque avalia que ele não atende suficientemente a demandas sociais. Outra, distinta, é combatê-lo, a exemplo dos seres da Era Mesozóica, porque não se enforcaram os doentes com as tripas dos pobres. De todo modo, faço uma indagação: houvesse o risco de a proposta ser derrotada — e isso só se daria se os ultrarreacionários formassem a maioria —, o partido, ainda assim, ajudaria a derrubá-la? Nesse caso, dadas as convicções da agremiação, o que viria no lugar seria melhor ou pior? A questão, em suma, que entendo ser de natureza ética, é saber se o PSOL só não votou contra porque sabia que a maioria dos seus pares votaria a favor. Não faltou um pouco de Kant naquela unanimidade?