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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por 337 a 125, governo tem expressiva vitória de uma derrota; o fator Lira

Arthur Lira, presidente da Câmara, e José Guimarães, líder do governo na Casa: atuação em dobradinha? - Lula Marques/Agência Brasil
Arthur Lira, presidente da Câmara, e José Guimarães, líder do governo na Casa: atuação em dobradinha? Imagem: Lula Marques/Agência Brasil

Colunista do UOL

01/06/2023 06h29

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A Medida Provisória que reestrutura os ministérios foi aprovada por um placar bastante elástico: 337 votos a 125. Houve uma abstenção. E o presidente da Casa não vota. Ao todo, 464 participaram do processo, com 49 ausências. Foi a vitória expressiva da derrota do bom senso em vários sentidos: em primeiro lugar, cumpre lembrar que o texto de Isnaldo Bulhões (MDB-AL) é aquele que retira cinco competências do Ministério do Meio Ambiente e que transfere para o da Justiça a demarcação de terras indígenas. "Ah, Flávio Dino será mau com os povos originários?" A questão não é essa. É evidente que se trata com menoscabo a pasta comandada por Sonia Guajajara. Em segundo lugar, mesmo essa inflexão reacionária a que foi submetida a MP correu sério risco de ser derrotada. Em terceiro, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, expôs sem meias palavras o que considera falta de coordenação política do governo e se mostra disposto a dividir o poder. Outra vez. Voltarei ao ponto depois dos números.

Que o Planalto tenha vislumbrado a possibilidade da derrota, não se duvide. Ou a matéria teria sido votada na terça. Sete partidos não deram nenhum voto contrário: PT (64), PDT (18), PSB (15), PSOL (12), PCdoB (7), PV (6) e Rede (1). Quatro da bancada do PT e uma da do PSOL não votaram. Essa é a base quase totalmente fiel ao governo: 123 votos na noite desta quarta — podendo chegar a 128. Nota: por que o "quase"? O PSOL deu 12 votos contra o arcabouço fiscal. E PDT (1) e PSB (3) contribuíram com quatro em favor do marco temporal das terras indígenas.

Ocorre que União Brasil, PSD e MDB também detêm ministérios. Cada um recebeu três — o UB hoje conta com dois, depois da desfiliação da ministra Daniela Carneiro (Turismo), que deve ir para o Republicanos. Juntas, aquelas três legendas somam 144 parlamentares — 59, 43 e 42, respectivamente. O problema é que o governo nunca sabe com quantos pode, de fato, contar. Observem: se a coisa se resumisse a uma soma, estaríamos falando de uma base com 272 parlamentares (128 + 144). Seria ainda insuficiente para aprovar emenda constitucional (308), por exemplo, mas não seria difícil conquistar os votos restantes. Teria dado para aprovar a MP com alguma folga.

Ocorre que essa conta não procede. Alguns dos adversários mais virulentos e barulhentos do Planalto estão justamente na UB. Houve nessas três siglas 95 votos em favor do marco temporal, por exemplo — e, pois, contra o governo. No caso da MP dos Ministérios, há na UB menos dissensões, mas ainda expressivas: 15 de uma bancada de 59 ficaram contra o texto; 35, a favor, e nove se ausentaram. Dos 43 do PSD, 36 disseram "sim"; dois, "não", com cinco ausentes. A performance dos 43 do MDB é quase a mesma: 35 "sins", três "nãos" e sete ausências.

Digamos que a área política do governo tenha mais certezas sobre os votos do PSD e do MDB, nos quais transita com mais facilidade. O União Brasil, no entanto, era uma incógnita. Ao encaminhar voto favorável da bancada, Elmar Nascimento (BA), o líder, afirmou que, por seu gosto, o partido votaria contra a MP. Mais: isso seria uma unanimidade. E aí afirmou, dirigindo-se a Arthur Lira:
"Em homenagem a você, líder, nós vamos lhe acompanhar e vamos votar de uma forma muito significativa a favor desse projeto. Esse gesto, presidente, eu faço em homenagem a você, que tem a minha lealdade, amizade e merece a minha confiança".

Considerem: naqueles 337 votos, estão os 35 de que fala Nascimento, que poderiam estar do outro lado. Segundo as palavras do líder do partido, eles foram dados a Lira, não ao governo. E o PP, do presidente da Câmara? Da bancada de 49, 34 votaram a favor, nove se opuseram, e seis não votaram. Voltemos aos 337: se os 35 do UB mais os 34 do PP votassem "não" em vez de "sim", o placar negativo saltaria de 125 para 194, e o positivo cairia de 337 para 268.

Mas ainda falta nessa conta o Republicanos, com 42 deputados. Também essa legenda está sob a influência de Lira. Noto: nada menos de 33 apoiaram o marco temporal, e só quatro se opuseram. Desta feita, a legenda deu 31 votos em favor da MP e apenas sete contra — com cinco ausências. Se esses 31 mudassem de lado, os 268 da conta anterior já cairiam para 237, e os 194 saltariam para 225... Os 12 do Podemos ficaram com o governo agora por 10 a 2. Na votação anterior, no entanto, o placar foi 7 a 3 contra, com duas faltas.

Esses números indicam por que não se procedeu à votação na noite de terça. O risco da derrota era real. A ideia de que 300 parlamentares seguem a orientação de Lira é uma fantasia. Mas quem disse que ele precisa de tudo isso para definir um resultado a favor ou contra o Planalto? Se tiver uma "bancada" de 110, por exemplo, espalhados nas mais diversas legendas, pode fazer o resultado. Afinal, no jogo do "sim" ou "não", eles seriam 220. Tirem os 110 dos 335 votos a favor, e se chega a 225. Some-se o mesmo número aos 125 que se opuseram ao texto, e se obtém 235. O governo seria derrotado.

RECADOS
Lira conversou ao telefone com Lula nesta quarta. Consta que o presidente evitou um encontro pessoal para não passar a impressão -- que, entendo, não se desfez -- de que o governo dependia, sim, de sua vontade e de sua orientação. Ao chegar à Câmara ontem, ele não economizou:
"Se [o texto] não for aprovado, não é por culpa do Congresso, não deverá a Câmara ser responsável"

E avançou, falando de si mesmo na terceira pessoa:
"O presidente da Câmara ajuda, mas ele não é líder do governo ou da oposição. Sou o presidente que mais teve votos de todas as vertentes. Venho alertando o governo dessa falta de pragmatismo. Há falta de consideração, de atendimento".

É evidente que não se deve atribuir o resultado apenas a ele. O governo também atuou, inclusive por intermédio da liberação de emendas. Sabendo a desordem que sobreviria a uma rejeição da MP, o presidente da Câmara tentou fingir que a bagunça não seria assim tão grande:
"Entendemos que não é uma matéria de vida ou morte para o país; é de organização para o governo. Se der certo, parabéns. Se não der, acho que há outras maneiras de estruturar. Mas não vou ser responsável por resultado positivo ou negativo."

Ele foi, sim, um dos responsáveis pela aprovação de um texto que, em si, já é muito ruim, mas que acabou virando o mal menor. É evidente que esticou a corda até o limite. Mas também não é suicida. Estamos falando de um interlocutor graduado do mercado financeiro. É certo que recebeu os alertas da turma sobre o que significaria a derrota do texto.

PADILHA NA BERLINDA
Os parlamentares reclamam da demora no preenchimento de cargos de segundo e terceiro escalões e de empecilhos na liberação de emendas. Dá-se como óbvio que Lira pretende recuperar a fatia que já teve de poder. E há quem afirme pelos corredores que faz uma dobradinha com José Guimarães (PT-CE), líder do governo na Casa. Seria o seu petista de estimação para o Ministério das Relações Institucionais, ocupado por Alexandre Padilha.

Será?

Em entrevista à GloboNews nesta quarta, o presidente da Câmara chamou Guimarães de "herói" e se referiu a Padilha nestes termos: "Todo mundo sabe quem faz a articulação política do governo" — aquela mesma que ele havia criticado duramente.

Depois da votação, foi a vez de o petista devolver elogios rasgados, não sem antes lembrar as dificuldades:
"Foi doído, foi doloroso, mas é uma vitória, fundamentalmente, do Parlamento. Alguns parlamentares tiveram grandeza e renunciaram às suas posições e compreenderam a gravidade do momento".

Referindo-se diretamente a Lira, derramou-se:
"O governo haverá de reconhecer o seu papel e os gestos que teve na condução desse processo para não permitir que esta matéria caducasse".

E criticou os seus colegas do Planalto:
"Os líderes suaram no diálogo e deram crédito ao governo mesmo com as extremas dificuldades que vivenciamos -- das demandas não resolvidas, dos chás de cadeira dos ministros, daquilo que não foi encaminhado".

Elmar Nascimento, aquele que dedicou os votos do União Brasil a Lira, afirmou:
"Depois que ficamos até a meia-noite de ontem [terça-feira] fazendo lavagem de roupa suja, devo dizer que a insatisfação é geral, todos os líderes reconhecem. Tudo isso é fruto da forma contraditória, desgovernada, da falta de uma base estabilizada".

E disse explicitamente que a aprovação do marco temporal era um recado da Câmara ao governo.

ENCERRO
A votação desta quarta parece um ultimato de Lira. Se o próprio líder do governo aponta problemas de coordenação, convém levar a coisa a sério, mesmo que ele esteja de olho na cadeira de um companheiro de partido.

A jornada no Senado promete ser mais tranquila, mas convém não descuidar. No caso da Câmara, o bom senso pensava ser absurdo o bastante o que se havia proposto para os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. E se viu que a coisa era muito pior. E convém lembrar: não é uma oposição organizada e programática que está a criar dificuldades para o governo, certo? Então é quem?