Reconversa: Reação exagerada de Lira prova acerto da fala cordata de Haddad
Assistimos, nesta segunda, a um caso claro, escancarado, de reação exagerada, que diz muito mais sobre quem reagiu do que sobre aquele que teria provocado a resposta excessiva. O português registra a palavra composta "super-reação", mas diz respeito a outra coisa; não tem o sentido de "overreaction" em inglês, que é precisamente a resposta destemperada e desproporcional a um determinado evento.
Não raro, a "overreaction" é uma ação industriada, consciente, para produzir determinado efeito. Um caso clássico? A fábula do lobo e do cordeiro. E nem é preciso que eu explique, não é mesmo? O primeiro só queria um pretexto para papar o segundo. As causas alegadas eram falsas. Na guerra, não é raro haver a "resposta desproporcional". Costuma acontecer quando o verdadeiro agressor resolve transferir as culpas para o agredido.
Vamos ao caso.
Em entrevista concedida na sexta ao podcast "Reconversa", comandado por este escriba e pelo advogado Walfrido Warde, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez considerações sobre sua relação com Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e sobre os poderes realmente inéditos que a Casa tem hoje. Tratou-se — e basta assistir à entrevista para constatá-lo — de um registro até de natureza histórica. O bate-papo foi ao ar nesta segunda, ao meio-dia.
Fiz uma pergunta bem-humorada ao ministro sobre a sua convivência publicamente harmoniosa com o deputado, reservado a cada um o seu papel, e observei que jamais se viu uma Câmara tão poderosa como a que temos. Em tom mais de registro do que de crítica, o ministro notou que o "presidencialismo de coalizão", como o Brasil o conheceu, acabou. Transcrevo trechos:
RECONVERSA: "O Lula, no evento do PAC, se referiu explicitamente, já falamos aqui, ao Arthur Lira e disse: 'Preciso mais eu dele do que ele de mim; então parem de vaiar o homem (...)' Houve um insuspeitado 'crush' político [risos] entre o senhor e o Lira. (...) Como é que tem sido essa relação? Ela é boa, parece. Ele cumpre acordos".
HADDAD: Essa boa relação começou justamente na PEC da Transição. Porque nem o governo Bolsonaro ia acabar nem o governo Lula ia começar sem aquela PEC. E, às vezes, o economista clássico só olha para a planilha, e ele não vê a equação política. Isso me causa um pouco de espanto. A gente tava num processo crítico ali".
Mais adiante, disse o ministro:
HADDAD: "Quem está valorizando o diálogo com a Câmara deveria também valorizar o diálogo com o Senado, que tem sido espetacular. E o fato é que a gente está conseguindo encontrar um caminho. Não está fácil. Não pense você que está fácil. A Câmara está com um poder muito grande, e ela não pode usar esse poder para humilhar o Senado e o Executivo. Mas, de fato, ela está com um poder que eu nunca vi na minha vida. Passei nove anos em Brasília -- primeiro e segundo governos Lula e primeiro da Dilma -- e nunca vi nada parecido. Então eu penso que tem de haver uma moderação aí, que tem de ser construída. Ela ainda não está às mil maravilhas.
RECONVERSA: Sou muito realista. Eu não sei se, em algum momento, na política, alguém chega e diz assim: 'Renuncio a esse poder que eu tenho", quando este é, em certa medida, incontrastável.
HADDAD - Mas sabe o que é bom na democracia? A pessoa não vai ter esse poder para sempre. A instituição pode até ter. Mas você não sabe nas mãos de quem ela vai estar daqui a dois anos, daqui a quatro anos, daqui a dez anos. Então, é nesses momentos de transição que você repactua. E aí tem o futuro, né? E o ser humano é caracterizado por isso, né? Ele tem futuro".
ACONTECEU O QUÊ?
Como toda a imprensa noticiou, haveria uma reunião nessa segunda à noite na residência oficial do presidente da Câmara com líderes partidários para tratar do arcabouço. Foi cancelada. Na raiz do adiamento, estaria a entrevista, embora muitos neguem que tenha sido essa a razão. Mas é certo que Lira não gostou, como se podia ler em seu perfil no Twitter. Releiam o que vai acima. O que há ali de ofensivo? Antes, diga-se, o ministro já havia saudado o bom entendimento entre ele e o deputado também em outro momento:
"O Lira e eu combinamos o seguinte: 'Olha, tem muito trabalho pela frente. Vamos separar o que é governo do que é Estado. Tem coisa que não é para este governo. Tem coisa que ou a gente recupera agora, ou não tem jeito'. E aí ele [Lira] topou, e o Rodrigo Pacheco, que é um senador espetacular, também tem dado uma contribuição enorme".
É fala de um ministro que quer conflito? Não! Mas Haddad havia pontuado, o que é evidente, que o Brasil saiu do chamado "presidencialismo de coalizão" para uma espécie de parlamentarismo sem primeiro-ministro. Há nisso ofensa ao Poder Legislativo? Tenham paciência! Se uma constatação como essa não pode ser tolerada, então não se trata apenas de um poder que chamei de "incontrastável", ainda que na democracia, e sim da aspiração a uma tirania.
ESCLARECIMENTO
O próprio Haddad desceu à portaria do Ministério da Fazenda e afirmou aos jornalistas:
"As minhas declarações foram tomadas como uma crítica à atual legislatura. Na verdade, eu estava fazendo uma reflexão sobre o fim do chamado presidencialismo de coalizão. Nós tínhamos, até os dois primeiros governos Lula, um presidencialismo de coalizão. E isso não foi substituído por uma relação institucional mais estável. Longe de mim querer criticar a atual legislatura. Era uma reflexão justamente para que a gente estabelecesse regras mais estáveis e duráveis, pensando no futuro da relação entre Executivo, Senado e Câmara Federal".
Haddad não escondeu, e fez muito bem, que o próprio Lira cobrou que fizesse um esclarecimento:
"Foi excelente [a ligação]. Ele [Lira] falou: 'Haddad, talvez caiba um esclarecimento, porque as pessoas estão achando que foi uma crítica pessoal e, à luz de toda a relação que foi estabelecida entre nós, eu gostaria que você esclarecesse'".
ASSISTIR AO VÍDEO
Duvido que Lira tenha visto a íntegra da entrevista. O conjunto da obra parece contar com a participação de gente dada à futrica. Longe da crítica pessoal, como se nota lá, fala-se de ordenamento institucional. O presidente da Câmara não pode correr o risco de achar que o poder que detém hoje é eterno, não é mesmo? Escreveu no Twitter:
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Quero receber"A Câmara dos Deputados tem dado sucessivas demonstrações de que é parceira do Brasil, independente do governo de ocasião. Todos os projetos de interesse do país são discutidos e votados com toda seriedade e celeridade.
A PEC da Transição, a histórica aprovação da Reforma Tributária e a votação do Arcabouço Fiscal, votadas para e neste Governo, são legados deixados por uma Câmara dos Deputados comprometida com o país, seu progresso e desenvolvimento, como anseia o povo brasileiro.
É equivocado pressupor que a formação de consensos em temáticas sensíveis revela a concentração de poder na figura de quem quer que seja. A formação de maioria política é feita com credibilidade e diálogo permanente com os líderes partidários e os integrantes da Casa.
Essa missão é do Governo, e não do Presidente da Câmara, que ainda assim tem se empenhado para que ela aconteça. Manifestações enviesadas e descontextualizadas não contribuem no processo de diálogo e construção de pontes tão necessários para que o país avance!"
VAMOS VER
A única manifestação descontextualizada é a do presidente da Câmara. Tivesse visto a entrevista, Lira teria constatado que o ministro exaltou o entendimento -- inclusive com o próprio.
Há um problema de preposição no texto do deputado: PEC da Transição, reforma tributária e arcabouço fiscal não foram votados neste governo, sim, mas não "para" este governo. Como ele reconhece, isso é do interesse do Brasil.
E, como resta evidente, poucos se empenharam tanto em fazer uma maioria política como Lula, já na negociação da PEC da Transição, que também era para encerrar "aquele governo" (o de Bolsonaro), apoiado por Lira. Como deve se lembrar o deputado, a farra reeleitoral tornou especialmente difícil equilibrar as contas públicas.
Ademais, indague-se: Lula tem ou não tem colocado seu peso político e os mais de 60 milhões de votos que recebeu em defesa das reformas?
ENCERRO
Nesta terça, líderes e o presidente da Câmara se encontram para debater o arcabouço fiscal. Haddad deve estar presente. Observem: o ministro reconheceu o enorme poder de Lira, não o contrário. Só não o chamou de César.
PÓS-ENCERRAMENTO
No dia 7 de setembro de 2021, Bolsonaro fez o mais golpista de todos os seus discursos, em evento em São Paulo. Chegou a dizer que não mais cumpriria decisões do ministro Alexandre de Moraes. Todos esperam uma reação de Arthur Lira. Ela veio só dois dias depois:
"A princípio, a assessoria jurídica está observando a fala na íntegra. Já temos alguns posicionamentos que falam que decisões inconstitucionais não seriam cumpridas. Ninguém é obrigado a cumprir decisão inconstitucional. Agora, decisão correta da Justiça, lógico, todos nós temos obrigação de cumprir. Decisão de Justiça já se diz, se cumpre. Se contesta, se recorre, mas se cumpre."
Faltou a Lira dizer se reconhecia, então, o direito de Bolsonaro ser juiz dos juízes. Tivesse reagido apenas na medida e de pronto à fala golpista, sem precisar nem do exagero, e talvez não se tivesse chegado ao 8 de janeiro de 2023. Faltou, em suma, ao presidente da Câmara ter com a truculência golpista um tantinho da dureza que tem com a civilidade democrática.
Nunca é demais lembrar: os diamantes são (quase) eternos; o poder não.
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