Maconha: Zanin admite que lei discrimina preto e pobre e vota para mantê-la
O voto do ministro Cristiano Zanin contra a descriminalização do porte de maconha para consumo está dando o que falar. Nem poderia ser diferente, não é? Lembro de uma frase de Fernando Collor candidato, que prometia deixar "a esquerda indignada e a direita perplexa". Os progressistas estão, de fato, indignados com Zanin. Os reaças o aplaudiram pela terceira vez em poucos dias.
O placar, até agora, é de cinco a um em favor da descriminalização: de um lado, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber; do outro, Zanin — que defende, no entanto, que a lei fixe uma quantidade para caracterizar o tráfico. Vamos ver.
Sou contra a legalização das drogas por razões puramente práticas. Com mais de 7 mil km de Litoral e fazendo fronteira com 10 países, três deles grandes produtores ou de cocaína (Colômbia e Bolívia) ou de maconha (Paraguai), uma decisão unilateral nesse sentido faria o país mergulhar no caos. Sem contar as sanções internacionais, nos mais variados setores, que decorreriam de uma decisão como essa. Seria um desastre. A questão, pois, é como reprimir o tráfico sem provocar outro desastre. Até agora, não conseguimos.
O que está em votação no Supremo, destaque-se, diz respeito à descriminalização apenas do porte de maconha para consumo, que é crime, mas sem previsão de prisão.
Estabelece o Artigo 28 da Lei 11.343:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
O mesmo vale para quem cultiva, para consumo próprio, "substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica."
O diabo dessa lei está na falta de detalhe. O Parágrafo 2º indefine:
"Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente."
Não me oponho a que todas essas circunstâncias sejam consideradas. Mas é evidente que, sem uma definição da quantidade que pode caracterizar o tráfico, que manda prender no Brasil é o preconceito.
ESTUDO
Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes cita um estudo elaborado pela Associação Brasileira de Jurimetria, sob a coordenação de Marcelo Guedes Nunes, Fernando Correia e Júlio Crescente. Foram analisados entre 2003 e 2017 656.408 flagrantes por tráfico e 556.613 apreensões. Vale dizer: mais de 1,2 milhão de casos, envolvendo 2.626.802. Diziam respeito à maconha 53,16% dos casos, e à cocaína, 44,5%.
O ministro lembra que, na média, bastam 32 gramas para alguém ser considerado traficante no interior. Na capital, são 51 gramas. Mas a pior cara do país e de uma lei disfuncional está por vir. A íntegra do voto do ministro está ao fim do artigo. Cito trechos:
ESCOLARIDADE
"A mediana para a caracterização de tráfico de maconha para os presos analfabetos é de 32 gramas; para aquele que tem o segundo grau completo, a mediana é de 40 g. Para os portadores de diploma de curso superior, a mediana é 49 g. (...) Com a mesma quantidade de drogas, com as mesmas condições de apreensão, com as mesmas circunstâncias fáticas, alguém só é considerado traficante com 52% a mais [na comparação com o analfabeto] se tiver curso superior"
IDADE
"No caso da idade, a variação é mais desproporcional. A mediana para caracterização de tráfico de maconha para suspeitos em torno de 18 anos é de 23,9 g. Para os suspeitos até 30 anos, 36 g. Para os suspeitos com mais de 30 anos, 56 g. Já vamos somando duas questões: para o analfabeto jovem, a mediana é lá embaixo. Com mais de 30 anos e curso superior, está quase 136% acima. (...)
COR DA PELE
"Branco, para ser considerado traficante, tem de ter 80% a mais para ser considerado traficante. (...) Então vamos somando as três grandes características: a chance de o analfabeto jovem, preto ou pardo, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é gigantesca. O branco, com mais de 30 anos e curso superior, este precisa de muita droga para ser considerado traficante"
(...)
O estudo reflete o que nós verificamos indo aos presídios: o aumento de jovens sem instrução, pretos e pardos, presos principalmente por tráfico de entorpecentes. E, a partir do momento que foram presos por tráfico de entorpecentes, são cooptados pelas organizações criminosas. Quando saem, têm de pagar o que estão devendo. E aí voltam por furto, roubo. É um ciclo vicioso que nós acabamos criando enquanto instituições (...)
Nós triplicamos, em seis anos, o número de presos por tráfico de drogas. Mas nós não triplicamos o número de brancos por tráfico de drogas, com curso superior. Triplicamos o número de pretos e pardos, sem instrução e jovens".
DE VOLTA A ZANIN
O ministro deu dois outros votos que causaram indignação entre progressistas. Foi o único magistrado da Casa a se opor à equiparação de ofensas dirigidas à população LGBTQIA+ à injúria racial. Deu justificativa técnica, afirmando que o mérito do julgamento não poderia ser alterado por embargos de declaração. André Mendonça não votou, e Nunes Marques acompanhou a maioria.
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Quero receberTambém não aplicou o princípio da insignificância e votou para manter a condenação de dois homens que furtaram um macaco de carro, dois galões para combustível e uma garrafa enchida pela metade com óleo diesel, itens avaliados em R$ 100.
Escreveu:
"Isso porque os recorrentes aproveitaram-se do repouso noturno para, mediante escalada, apropriarem-se da res furtiva [coisa furtada], bem como a situação do paciente Fábio Henrique Vieira dos Santos, que, mesmo cumprindo pena por outro crime (roubo), não se viu impedido no cometimento de novo ilícito. Tais condutas denotam total desprezo pelos órgãos de persecução penal, como se as suas condutas fossem criminalmente inalcançáveis".
O CASO DAS DROGAS
No caso do furto, seguiu jurisprudência do STJ. No do voto que desagradou à comunidade LGBTQIA+, entendo que fez uma leitura errada do formalismo, mas não me aterei agora a minudências. No que respeita à descriminalização do porte de maconha para consumo, informa o site do STF:
"O ministro Cristiano Zanin reconhece discrepâncias na aplicação judicial do artigo 28, que leva ao encarceramento em massa de pessoas pobres, negras e de baixa escolarização. Contudo, entende que a mera descriminalização contraria a razão de ser da lei, pois contribuirá para agravar problemas de saúde relacionados ao vício.
De acordo com o ministro, a declaração da inconstitucionalidade do dispositivo retiraria do mundo jurídico os únicos parâmetros objetivos existentes para diferenciar usuário do traficante. Ele sugeriu, contudo, a fixação, como parâmetro adicional para configuração de usuário da substância, a quantidade de 25 gramas ou seis plantas fêmeas."
Não entendi o raciocínio. Um dispositivo pode ser considerado inconstitucional por uma Corte Constitucional quando "a razão de ser de lei" pode se chocar com a razão de ser da própria Carta. Se ele reconhece que as "discrepâncias na aplicação judicial do Artigo 28 levam ao encarceramento em massa de pessoas pobres, negras e de baixa escolarização", desaparece o "contudo" porque a razão de ser da Constituição é assegurar a igualdade perante a lei. Admite-se a discriminação positiva, que protege comunidades vulneráveis, mas não a negativa.
CONCLUO
Vamos ver. Ainda é cedo para um juízo mais severo. A pior coisa que poderia acontecer ao Supremo e ao próprio ministro, no que respeita à sua atuação, seria a determinação de contrariar expectativas, hipótese em que se empenharia mais em administrar o voto do que em julgar propriamente.
As esquerdas não receberam Alexandre de Moraes com entusiasmo. Indicado por Michel Temer, veio, vamos dizer, do campo chamado "conservador". O confronto com os golpistas levou muita gente a releituras, não é? E saíram da pena daquele "conservador" de antes as palavras abaixo sobre o julgamento em curso, que não convenceram o "progressista" Zanin:
"Nós triplicamos, em seis anos, o número de presos por tráfico de drogas. Mas nós não triplicamos o número de brancos por tráfico de drogas, com curso superior. Triplicamos o número de pretos e pardos, sem instrução e jovens".
Alguém poderia dizer: "Ah, então Alexandre também contrariou expectativas..." Nem acho que as coisas se coloquem exatamente nesses termos, mas digamos que tivesse acontecido assim. Quando a surpresa se dá em favor do pacto civilizatório, comemoremos!
Ruim é quando acontece o contrário. Não me surpreendi nem num caso nem noutro.
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